SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 27 de maio de 2011

TEMPESTADE - 18 (Conto)

TEMPESTADE – 18

Rangel Alves da Costa*


Totalmente embriagada, tentando se manter em pé a todo custo em meio à fúria do tempo, Manuela pendeu com uma rajada de vento e caiu em meio às poças, ao aguaceiro brutal, pois corria levando consigo todo tipo de bagaceira. Somente a intercessão divina para salvar a mãe de Marilda da morte certa e horrenda.
Quem também esteve prestes a cometer uma asneira dessas foi a avó de outro aluno de Suniá, o menino Beto. A velha senhora, com mais de setenta anos e cheia de reumatismos que mal conseguia andar, era mais teimosa do que uma pedra, do que um lajedo inteiro. Pois a danada queria porque queria, mesmo vendo o mundo se acabar por todos os lados, na escuridão chispada de água, ir lá ao galinheiro do quintal contar as galinhas, que era pra ver se todas estavam ali protegidas.
Por três vezes foi arrastada pela mocinha Inácia já quando ia puxando o ferrolho. Pegava o cabo de vassoura para investir na empregada, ameaçava de expulsá-la de lá debaixo da tempestade, esculhambava de tudo que era nome feio. Mas a mocinha, já conhecedora por demais dessas reações amalucadas da patroa, apenas se esforçava para não sorrir de modo que ela percebesse.
Chamava-se Querência a senhora avó do menino Beto. Viúva, com aposentadoria que dava pra sobreviver com folga, além de possuir aplicações em poupança, cujo valor nem ela sabia mais. Por outro lado, era tida como uma verdadeira mão de figa, numa avareza de não acabar mais.
Segundo os vizinhos, uns poucos amigos e familiares, a velha era daquele tipo de cozinhar ovos na chaleira do café que era pra não gastar o gás; só comprava outra sandália quando a que usava já estava imprestável ou Inácia cismava e jogava no mato. Diziam que ela mandava pechinchar quando a empregada ia pagar conta de água e luz. Só podia ser lenda, mas espalhavam que ela emprestava dinheiro a juros a Santo Expedito, que era pra este repassar, também a juros, para os endividados.
Mas com Beto era muito diferente, pois tudo que o único neto quisesse ela disponibilizava sem fazer cara feia, reclamar de preço nem de nada. Tinha e criava o menino com neto e filho, talvez por isso mesmo tanta afeição. A mãe do menino o deixara com ela assim que cismou de ir morar e trabalhar lá pelas bandas do sul. Saiu de casa dizendo que não demorava pra voltar e levar o filho, mas já se haviam passado quase dez anos e nada dela retornar. Nem notícias enviava mais.
Desse modo, consciente que o destino de Beto estava em suas mãos, a avó Querência abraçou essa boa causa com devoção. Mas pela fama de mesquinha que não deixava de ter para certas coisas, colocou o menino pra estudar em escola pública, pois dizia a todo mundo que já ia ter muito gasto com seu sustento. Vendo o esforço e a inteligência do pequenino, voltou atrás e resolveu matriculá-lo numa escola particular, quando já era tarde demais, pois este logo afirmou que não deixaria a escola da professorinha Suniá por nada nessa vida.
Nesse dia, já noite de tempestade, pois desde a tarde que a escuridão era completa, a velha senhora, contudo, não estava preocupada apenas em saber se suas galinhas estavam todas na casinha no quintal, no galinheiro. Queria dar vassouradas na mocinha Inácia porque impedia que ela fosse até lá, mas não durava muito e chamava a menina pra demonstrar seu desassossego porque estava longe do netinho numa situação daquelas.
“Inácia, se ele fala tanto bem dessa professorinha, essa tal de Suniá, então é porque ela deve ser mesmo muito boa com ele. Se ela é assim como penso, então o meu menino deve tá sendo muito bem cuidado e protegido por ela. Mas juro por Deus que dava tudo, tudo não, uma coisinha, se eu pudesse trazer ele de volta daquela escola agora mesmo. Será que ele tá bem, Inácia? Venha cá, e se eu lhe desse um vestido novo você teria coragem de ir até lá buscar ele, minha filha?”, perguntou a avó entristecida, mas não se sabe se pelo neto ou se porque se predispôs a comprar uma roupa nova para presentear.
Mas a empregada respondeu na ponta da língua: “A senhora não tá broca não, tá endoidando, isso sim. Nem por um caminhão carregado de dinheiro eu ia bota meus pés lá fora num tempo desses. Dona Querência, eu sou muito nova ainda, só tenho dezoito anos, e a senhora já quer me ver mortinha da silva, é? Deus me livre ao menos botar a cabeça aí fora, arriscando um raio cair, uma tufada de vento me descangotar. Deus me livre. Mas não se preocupe não que ele está bem. Se o mundo não acabar dessa vez ele voltará são e salvo, pode ter certeza”.
Dona Querência brigava muito com a mocinha, não a deixava em paz mandando que fizesse isso ou aquilo. Fazia isso sempre, porém gostava dela demais. Sentia por ela um amor de filha, tinha vontade de dar roupar novas, sandálias, perfumes, tudo que uma mocinha merece para viver bem arrumada. Um monte de vezes já esteve pra fazer isso, pra chegar perto dela e carinhosamente oferecer isso tudo. Sofria muito por ainda não ter feito ainda nada do que gostaria, mas um dia desses faria, tinha certeza. Mas tinha de ser logo, também sabia.
Inácia era uma flor de menina. Mocinha de dezoito anos, sem gostar de chamego, mesmo que não fossem poucos os apaixonados. De família pobre demais, do que ganhava tomando conta da casa da viúva quase não usufruía um tostão sequer, entregando tudo nas mãos da mãe. Também era pouquinho o ganho, quase nada, nem um salário. Porém não deixava de viver contente por ajudar Dona Querência e principalmente o menino Beto e, acima de tudo, poder freqüentar a escola de alfabetização todas as noites.
Naquela noite não teria aula, talvez ninguém nem estivesse pensando na escola senão em proteger-se, buscar sair daquilo dilúvio ainda com vida. Só não ficava mais alegre com a alfabetização que recebia porque na escola não tinha uma professorinha igual aquela que Betinho, como chamava, falava tanto, era verdadeiramente apaixonado.
Aliás, ela e o neto de Dona Querência eram cúmplices em muitas coisas. Conversavam como dois grandes amigos, sorriam de festejar coração e corpo, numa amizade sincera e devotada. Conhecedor das dificuldades financeiras dela para comprar uma roupinha ou uma chinela, muitas vezes ele mentia pra avó e dizia que estava precisando de dinheiro pra isso ou aquilo. A velha perguntava pra que, dificultava, se fazia de esquecida, mas sempre acabava dando o que ele pedia. E aí ele ia entregar nas mãos da boa amiga, dizendo sempre que ficaria de mal se ela não aceitasse.
Naquela escuridão de lamparina também ela estava com muita saudade dele, também pensando como ele deveria estar àquela, o que deveria estar fazendo, como estaria. E nesse momento quis ser um vento bem forte pra romper todos os outros ventos mais fortes e chegar até onde ele estava, colocá-lo debaixo de uma asa, pois vento também tem asas, e voar com ele protegido para um lugar onde não houvesse nenhum perigo. Ele merecia, ela reconhecia isso, e por isso mesmo deixava cair uma lágrima na face morena.
Estava nesse sofrimento todo, sentada num banquinho na cozinha, na mais completa escuridão ruidosa e barulhenta, quando imaginou estar ouvindo um grito rouco. E estava mesmo. Era Dona Quitéria gritando sufocada, com a mão na altura do peito, implorando o remédio. Estava morrendo.


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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