TEMPESTADE – 8
Rangel Alves da Costa*
Um pouco afastado do riachinho, mas ainda nas redondezas pobre da cidade, Sinhá Culó se apegava a tudo que fosse santo temendo o pior. De Lourdes, a filha solteirona, moça velha como se dizia por lá, depois de tanto rezar para Santa Bárbara protetora contra as tempestades, agora se danava a fazer promessas para a calamidade passar.
E no seu temor e perplexidade diante das molhações, raios e ventanias, segurou pelas mãos um verdadeiro rosário de santos milagreiros. Era na fé, na extrema religiosidade, que o povo buscava solução pra todos os males, mesmo que estes fossem causados pelo próprio homem. Mas não era o caso, pois não haveria de se pensar na intervenção humana para um estrago daqueles.
Pra Santo Antonio Pequenino prometeu abrir o seu nome nas três primeiras aroeiras que encontrasse quando o sol voltasse a brilhar; pra Santo Expedito prometeu encher um cesto de flores do campo e jogar em seu louvor lá da montanha mais alta que houvesse pelos arredores; pra Nossa Senhora dos Milagres prometeu nunca mais maldizer os outros santos por jamais ter encontrado um namorado que lhe fizesse sentir o gosto que tem o beijo. Nunca tinha beijado, é verdade.
Mas ela fez ainda uma promessa muito mais contundente, mas nem por isso menos singela. A partir da manhã seguinte que o sol retornasse com suas cores pelos campos e matarias ficaria de pés descalços durante um mês e após isso iria entrar na igreja e seguir de joelhos até o altar. E prometia tudo isso chorando, num entristecimento que causava ainda mais aflição entre os seus velhos pais.
Os seus pais, Sinhá Filó e o velho Timbé, além do medo e da certeza das muitas desgraças que a tempestade estava causando e ainda causaria, e da preocupação com o estado da filha, também sentiam uma aflição silenciosa pela ausência de outro filho na casa, e logo em momentos terríveis como aqueles. E só Deus sabia onde andava naquela hora Terêncio, o maluquinho da família.
Terêncio, mais conhecido como Teté, já era adulto feito, já chegado ao amadurecimento, mas continuando criança pelo pouco tino que tinha na cabeça. Na verdade, não tinha praticamente juízo algum, vivendo naquele estado de insanidade, com algumas características de palermice desde o momento que nasceu. Assim, era considerado doido varrido, maluco mesmo, bestinha de parecer criança e em muitos momentos agir ainda com menos razão do que determinadas crianças.
Como dito, era doido varrido, chegando a ficar irreconhecível em noites de lua cheia, quando dizia que a noite vinha com uma boca bem grande e aberta pra lhe engolir. Sim, era incontestavelmente doido, louco, alucinado, piradinho da silva. Mas não de jogar pedras, de agir com violência contra quem quer que fosse, de fazer com que as pessoas corressem dele por ser perigoso. Pelo contrário, muito pelo contrário.
Teté era um doidinho cordial, bondoso, sorridente, alegre, sempre apto a ter os amigos que com ele quisessem dialogar. Prestava muitos favores, ajudava a quem visse necessitando, não gostava de ver violência nem praticá-la. Geralmente era visto passeando descalço pelas ruas, tirando o lixo que se juntava nos jardins, sentado nos bancos das praças. Mas às vezes seguia por uma estradinha, uma vereda no mato fechado, e sumia por dentro do resto da mataria sem que ninguém soubesse pra onde ele ia.
Aonde ele ia era mais perto do que se podia imaginar. Era quase por detrás do riachinho, após a curva do labirinto. Daí em diante começava uma pequena vereda que ia dar bem no pé da montanha mais alta da região, de onde se avistava boa parte da cidade e das paisagens ao redor.
Ali em cima, num cantinho que só ele conhecia, embaixo de um pé de pau, sentava numa pedra com a qual já guardava amizade de muito tempo. Achava a pedra a melhor amiga do mundo, a mais sincera, a mais verdadeira e que nunca o tratava igualmente a maioria das pessoas que moravam lá embaixo.
Sentado na pedra, forçando o olhar por entre as folhagens para enxergar ao redor e tudo, começava a conversar com ela, muitas vezes coisas desconexas, sem pé nem cabeça, mas numa cumplicidade de admirar a quem visse as cenas:
“Nunca mais você conversou comigo. Já faz muito tempo que mandou eu sentar aqui e pronto, depois calou de vez. Se tiver com raiva diga logo, fale de uma vez, mas o que num pode é eu ficar aqui falando sozinho e você aí feito uma pedra dura, de boca fechada, sem dizer nem um bom dia. Se quer assim, também qualquer dia deixo de vim aqui pra falar com você. Se é pra ficar de mal então vamos ficar...”.
“Hoje eu queria que você me dissesse uma coisa, mas parece que nem adianta perguntar. Quando eu tô com fome vou comer goiaba ou chupar manga, gosto também de farinha seca com rapadura. Uma vez mandaram eu botar na boca pimenta, mas eu num gostei não, era muito doce. Mas você parece que nunca come, num sente fome nem sede. Se isso tudo for preguiça pode saber que vai morrer sequinha, pois nunca vi você sair daqui pra procurar comida em lugar nenhum. O que faz é ficar aqui toda quieta, parecendo que dorme, esperando que chova pra beber água ou algum passarinho lhe traga um mandacaru. Se eu fosse você gostava mais de urtiga ou de cansanção, porque mandacaru engorda muito. Mas doida como você é pode comer o que quiser...”.
“Ninguém olha pra você, mas tem uma cobra que sempre vejo ela e ela sempre olha pra mim, a codorna também olha pra mim, a flor da catingueira também olha pra mim. Um montão de gente olha pra mim sorrindo, mas eu só fico rindo mesmo é pra umburana que tem ali, acho ela tão bonita, se ela quisesse namorar comigo. Mas pra você ninguém olha não. Até parece que os outros ficam com medo de sua cara sempre fechada, do seu orgulho, da sua preguiça. Você é preguiçosa demais, parece doente. Toda vez que venho aqui você tá aqui dura e no mesmo lugar, parecendo pedra. Se fosse uma pedrona bem grande, uma coisa grandona assim, mas nem isso você é. Apenas uma pedra é o que você é...”.
E ficava muito tempo dialogando essas maluquices com a pedra e em cima desta. Por certos dias estava mais conversador, mais alegre, disposto. Outros dias parecia que só subia ali para esquecer outras realidades, fugir de alguma coisa. Quando estava assim quase não falava, ficava apenas futucando de um lado a outro com um graveto, jogando pedrinhas nas moitas, vendo o tempo e a vida passar.
Mas não era nenhum acaso ter de ficar revoltado, triste, até zangado de vez em quando. Como já afirmado, a maioria dos moradores do lugar o tratava com muita desumanidade, muita arrogância, vendo e se dirigindo a ele como um doente perigoso, um doido ameaçador, quase como um animal feroz que estivesse à solta.
Muitas vezes ele estava quietinho no seu canto, vivendo o seu mundo, conversando sozinho, e chegava um e outro para chicotear, jogar pedras, dizer palavrões, ameaçar de fazer um monte de coisas. Ora, não tinha o juízo equilibrado, possuía realmente graves transtornos mentais, mas não vivia tão alheio à realidade não, pois entendia muito bem todo mal que contra si era dirigido. Daí ir acumulando raiva, revolta, verdadeira ira.
Por isso que nesses momentos de aflição, quando a tempestade parecia que ia acabar com tudo e com todos, ele passeava tranquilamente pelas ruas de um lado a outro, cantando, como se estivesse somente tomando banho de chuva. Era um mistério que somente se explicaria depois, mas que tinha muito a ver com o tratamento desumano que recebia de muita gente que agora estava implorando, chorando, escondido com tremores debaixo da cama.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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