TEMPESTADE – 15
Rangel Alves da Costa*
Os pais dos meninos e meninas que não puderam sair da escola e retornar às suas casas por causa do verdadeiro dilúvio, viviam uma indescritível agonia. A maioria deles muito pobres e, no meio destes, famílias que mal tinham como sobreviver, se dividiam entre a preocupação com o bem-estar dos filhos e o medo da destruição de tudo que possuíam, muitas vezes fruto de uma vida inteira de pesaroso trabalho.
Os pais de Aninha, a espevitada demais, a que gostava de se meter em tudo, mas sempre amigueira e sincera menina, moravam fora da cidade, acerca de um quilômetro após o riachinho. Não se podia imaginar que uma casinha no meio do mato, cercada do empobrecimento e da desesperança por dias melhores, pudesse tornar uma família com a consciência da posse de imensa riqueza.
Mas os pais de Aninha, bem como seus dois irmãos um pouco mais velhos, viviam nessa grandiosa percepção de que aquilo que possuíam tinha o poder de proporcionar uma vida cheia de felicidades e alegrias. Assim, eram pobres demais, mas sobrevivendo como se fossem os mais ricos do mundo, os mais poderosos em tudo, pois não faltavam o ouro e o diamante em cada prato de feijão com farinha que colocavam sobre a mesa de ripas.
A infinita riqueza era o que possuíam cotidianamente para se manter e se alimentar. Duas vaquinhas, um cavalo magro, um carro de bois sem os bois, uma carroça velha e um cachorro, mas quanta felicidade por essa imensa fortuna. Mas depois que a tempestade começou a cair de repente tudo se transformou em tristeza.
Como visto, além do aperreio danado por causa da filha que não sabiam como estava nem onde estava, não viam a hora de ficar sem o casebre que tinham para morar. Casinha feita totalmente de barro e ripa, de quatro compartimentos com tijolo por riba, já corriam de um lado a outro, pelo lado de dentro mesmo da moradia, para ver se davam um jeito nas telhas que ia se quebrando, se fazendo em pedaços com os pingos grossos e os paus e garranchos trazidos pela ventania.
Sem cimento nem nada, apenas o chão duro batido, o piso interno já era uma poça d’água. Como não havia nem tanto balde, cuia ou vasilhame que desse para espalhar por todo lugar, as goteiras já pareciam um chuvarar do lado de fora. Para não empoçar tudo, os meninos tentavam abrir uma valeta para a água escorrer até a porta da cozinha. Mas tudo já era empoçamento, destruição e agonia.
Por causa desse tormento dentro do casebre, tentando salvar alguma coisa, é que se dividiam em preocupações. De minuto a minuto a mãe dizia:
“Meu Deus do céu, chuva é bom, mai assim é demai. Desse jeito vamo ficar sem moradia e nem sabemo adonde anda Ana Rute. Espero em Deus que ainda teja na escola, esperano essa desgraceira passar, poi do contraro é inté difici de imaginar onde ela teja agora. O probema é que nesse breu todo a bichinha num vai poder nem vortá pra casa, se ainda incrontá casa em pé. Se o tempo quilariasse um tiquinho eu merma ia percurá minha fiinha, mai desse jeito só mermo implorano ao bom Deus”.
O pai fazia de tudo pra demonstrar força e calma, mas também estava numa agonia que não agüentava mais. Não falava mais sobre a menina pra não piorar as coisas, mas estava em tempo de sair correndo enfrentando a fúria da natureza para ir atrás dos passos da filha. E num instante que lágrimas quiseram descer dos olhos ele chamou os meninos e a esposa e disse:
“Num sei quantas horas são, mai sei que tudo já é de noite fechada. Num só fechada, mai tumem perigosa. Sei que ninguém vai drumir pruque num tem adonde drumir e tumem pruque vai seu difici bater o oio sem minha menina chegar. O pior é que a gente quer que ela chegue, mai tumem que ela num saia adonde ela tá. Num vou drumir inquanto não botar os oio nela, disso tenho certeza. Mai Deus há de ajudar que ela ainda teja na escola, como há de tá pruque quano começou a tempestade disimbestar era hora dela tá lá na escola. Se tava lá ainda tá, inté pruque ninguém tinha cuma saí. Mermo assim quero que vosmicês arrume um jeito de se arranchar e fechar os oio, pruque eu já tô decidido de enfrentar esse tempo e esse breu e ir atrás de vê minha menina. Ninguém há de empatá que incronte ela, só Deus...”.
“Mai meu veio, vosmicê num pode se largá puraí num tempo desse, mai de jeito nenhum. A menina deve te tá na escola mermo homi, e tano lá tá bem cuidada. E vosmicê num pode sair daqui pruque quano vortá tarvez num incronte nem mai casa de pé. Entonce deixe de avexame e vamo rezar pra tudo miorá e quano o tempo se abrir amanhã a gente incronta ela. Vosmicês vão ver a sapequinha apareceno na correria naquela malhada”.
Foi o argumento conseguido pela mulher para evitar que o esposo fizesse uma besteira daquela, que era sair por aí feito um louco, sem ver nada pela frente, em busca da filha. E em situação não menos angustiante estava a família de Tiquinho, ali pelos arredores da cidade, descendo a Ladeira dos Quatro-Ventos.
Tiquinho era filho único, o danado, estudioso que só, arreliento sem igual; menino trigueiro, um característico agrestino em tudo, no falar, no andar, no gostar de ajudar o pai, mas também no brincar nos descampados, no caçar passarinhos de baleadeira, no subir nos pés de pau para catar fruto.
Achava a fruta do quintal do vizinho muito melhor, de uma doçura incomparável, mas tinha de saborear antes de chegar em casa, pois se seu pai encontrasse com manga na mão perguntava logo onde arrumou. Se fosse confirmado que sido fruto de reinação, tinha que ir lá na casa do dono do quintal dizer que tinha entrado ali, mas que não entrava mais. Mas não tinha jeito mesmo, pois o vizinho já conhecia as incontáveis reincidências e se danava a sorrir.
De família resumida, pequena mesma, pois somente ele e os pais, ainda assim a mãe quase vivia ausente do crescimento e da vida do filho. Mulher muito nova ainda, na flor da idade, mas adoecida que médico nenhum ainda sabia do que realmente se tratava. Pela região já tinha andado por tudo que era hospital e posto de saúde e nada de nenhum doutor descobrir qual a doença que tanto lhe afligia.
Estava boazinha e de repente as pernas enfraqueciam, chegavam uma tontura e um amolecimento pelo corpo que chegava a desmaiar onde estivesse. Já caiu perto do riachinho que quase uma cacimba lhe engole; outra vez foi em pleno mercado, no dia de feira, quando desabou por cima de um cesto de araticum. Por isso mesmo quase não saía mais de casa, quando muito caminhando ao redor. E pouco antes da tempestade chegar lhe veio a danada doença e sorte que caiu foi na porta da cozinha, enquanto olhava para o tempo que parecia querer desandar.
Deitada na cama, atormentada pela fúria por todos os lados, sem poder dormir nem levantar, ficava o tempo todo gritando pelo marido e perguntando se Tiquinho já tinha chegado. “Mazé, mia fia, se acarme que o menino tá lá na escola. Você iria querer que ele saísse de lá debaixo dum pé d’água desse era? Mais tarde, assim que a chuva passar e essa ventania se acarmá ele vem pra casa. Agora descanse que preciso ajeitá umas coisa na casa, poi a água já tá quereno entrar pela porta da frente...”, disse o marido, fazendo tudo para acalmá-lo.
“Mai só vou descansar quano ele chegar, poi tô cum pressentimento muito ruim. Uma coisa me diz que nunca mai vou ver meu fiinho...”.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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