TEMPESTADE – 7
Rangel Alves da Costa*
O mundo em desalinho que estava dentro da igreja só era menos desanimador do que o mundo lá fora. Pelas ruas, campos e vastidões, numa imensa área que se perdia de vista, continuava reinando a fúria da natureza em toda sua completude.
Dentro das casas, trancadas como se estivessem com medo de as portas serem abertas para a morte, as pessoas praticamente não sabiam mais o que fazer diante de tanta voracidade. Rezavam, faziam promessas, mudavam os móveis de lugar por causa das goteiras, ouviam o quebrar de telhas, as rachaduras por toda parte, as águas começando a entrar por onde houvesse uma brecha.
Parecia não haver lugar seguro. Nos prédios e construções portentosas os medos e as apreensões eram os mesmos, acrescidos do fato que a as pessoas trancadas nas repartições choravam querendo retornar para suas casas, seus familiares, para perto dos filhos e não podiam sair de jeito nenhum.
Só mesmo um insano, alguém completamente fora da razão, para abrir uma porta ou pular uma janela e enfrentar a velocidade traiçoeira do vento, os raios e relâmpagos que aumentavam cada vez seus brilhos de terror e morte, a chuva e os seus pingos que pareciam cair numa massa única e violenta, pesada e destruidora. Além de tudo isso a completa escuridão, como se um entardecer fosse de noite tenebrosa, arrepiante, macabra.
E era mesmo, pois qualquer passo naquela escuridão poderia significar a morte. Colocar a vida em risco porque não sabia o que poderia encontrar adiante, depois de cada passo dado. Buracos se formavam a cada instante; paralelepípedos saíam do lugar e ficavam revirados, levados pela correnteza; troncos e galhos de árvores se amontoavam, mas não porque caíram e ficaram ali, e sim porque foram transportados pela força do vento e da enxurrada.
Contudo, não se sabe quem era nem os motivos, quais as forças e a disposição para estar ali, mas um vulto zanzava de um lado para outro, ora em pé observando tudo a partir da escuridão, ora caminhando, virando esquinas, retornando ao mesmo lugar.
De passo firme, parecia nem se importar com aquilo tudo se acabando ao seu redor, numa inteireza muita estranha para ser de uma pessoa comum, normal. Seja o que fosse ou como fosse, pra cima e pra baixo o estranho vulto caminhava, mostrando-se com suas vestes negras apenas quando os clarões retumbavam.
Fabiana avistou o vulto e nem quis acreditar que uma pessoa estivesse andando daquele jeito, tranquilamente, pela rua debaixo de um tempo daqueles. Avistou porque foi ver se enxergava alguma coisa lá fora pelo buraco da fechadura. Quando a luz do relâmpago incidiu na escuridão a pessoa ia passando bem em frente à sua casa. Rapidamente contou ao esposo, que estava sentado no sofá da sala tentando entender o porquê daquela inesperada tempestade.
“Antonio, lá fora tudo tá como breu, mas vi uma coisa que se eu disser você não vai acreditar. Você acredita que tem gente que ainda tem coragem de andar tranquilamente num tempo desses? Acredite, pois eu vi uma pessoa lá fora, passando como se nada tivesse acontecendo. Tá tudo tão escuro e tão medonho, barulhento e as águas levando tudo, e ainda tem gente que nem aí pra essas coisas da natureza...”.
“Você pode estar enganada mulher. Nessa escuridão toda os seus olhos podem ter lhe enganado. Talvez tenha vista um animal passando assustado, correndo com medo da chuva, do vento e dos trovões, e pensou que era gente. Pode ter certeza que gente não é. E se for gente não é desse mundo, disso pode também ter certeza...”. O esposo tentou uma explicação.
“É, pode ser, mas ainda duvido...”, e Fabiana ficou andando de um lado pro outro, demonstrando claro entristecimento. Vendo o jeito da esposa, Antonio perguntou se ela estava sentindo alguma coisa e chamou para que sentasse ao seu lado no sofá. Mas ela continuou mexendo numa coisa e noutra, ajeitando os panos por cima das vidraças e dos espelhos, guardando pequenos objetos no armário. E tentou explicar porque estava assim tão pensativa:
“Fico imaginando, Antonio, como muitas famílias mais pobres do que a gente estarão passando nesse momento. Muitas delas, principalmente lá perto do riachinho, vivem praticamente em barracos, em casas que até o sol quente demais amedronta, qualquer brisa chega a assustar, e o que dirá essa tempestade medonha que certamente está destelhando casas, derrubando paredes, arrastando muros. Tronco de árvore que é bicho forte, fincado e bem fincado, está sendo derrubado e arrastado, imagine o que aqueles filhos de Deus não estarão sofrendo numa hora dessas...”
Então Antonio mostrou essa realidade triste no olhar e tentou algumas palavras: “Verdade, mulher, tem toda verdade. Fico aqui tentando mudar o assunto pra outras coisas, mas não paro de pensar naqueles pobres coitados. Tanta criancinha por lá, tanta gente muito envelhecida, tanto doente e agora tanta agonia e desespero. E o pior que tudo de uma hora pra outra, assim do nada. E esse repente, que Deus nos proteja, é que pode acabar de vez com a vida de uma família, arrancar-lhe a sua moradia, tomar todos os seus sonhos de sobrevivência. Gente pobre demais que já não tem nada, de repente ver o teto voar pelos ares é dor demais em corações já tão sofridos...”.
Fabiana desesperou-se mais ainda, pela voz sentia-se o pranto apertado, querendo dar vazão ao sentimento: “Mazinho nosso afilhado, aquele mesmo filho de comadre Bastiana e compadre Geraldino, como não deve tá o bichinho agora, asmático como é, doente que não pode ver uma poça de água na sua frente. Sei não, meu Deus, só o Senhor mesmo pra salvar esse povo, para salvar nós todos, desse sofrimento profundo e dessa agonia imensa. Digo com sinceridade, Antonio, se eu soubesse que não ia me acabar debaixo desse temporal, juro por Deus que ia até lá, ao menos na comunidade do riachinho, que era para ao menos prestar solidariedade, ajudar no que fosse possível...”.
“Vou tentar uma espiadinha pelo buraco da fechadura pra ver como anda o tempo lá fora, se já estiver com mais claridade, a chuva já estiver baixando mais, então nós vamos até lá. Espere aí que eu vou ver...”. Assim que Antonio botou o olho pra tentar enxergar o outro lado recebeu foi uma pancada que quase derruba a porta. Não se sabe bem o que, mas algum objeto desgarrado veio jogado pela força da ventania bem em direção ao local. Por pouco o olho não é afetado.
Caindo pra trás, assustado, tentando se erguer, disse à esposa que já estava lhe acudindo aos gritos: “Meu Deus, parece que tá pior, tá muito pior Fabiana...”.
E estava muito pior mesmo. A tempestade que já era forte demais aumentou ainda mais a intensidade. Um barulho terrível do vento nas árvores, arrancando tudo, jogando coisas pelo ar, transformava a tarde na mais terrível das noites. Ainda assim, pela rua, bem diante, parecia que alguém passava cantando.
Mas lá perto do riachinho, local onde viviam as famílias mais carentes do lugar, o que se ouvia eram gemidos dolorosos, gritos medonhos de agonia, um choro incessante e espalhado por dentro de cada barraco que ainda estava de pé. Muitos deles já haviam perdido o telhado, outros alguma parede ou portas. Contudo, uns quatro ou cinco não resistiram aos impactos da velocidade do vento e da força das águas e desabaram.
Certamente uma afirmação mentirosa, mas disseram ter visto uma velha senhora sendo levada pelo ar agarrada no seu oratório.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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