SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 30 de maio de 2011

TEMPESTADE - 21 (Conto)

TEMPESTADE – 21

              Rangel Alves da Costa*


A família de Totinha não era diferente da maioria das famílias da região. Como se dizia, era apenas remediada, não tendo nada além do extremamente necessário à sobrevivência. E o necessário à sobrevivência, todo o luxo que as pessoas podiam dispor e dar graças por isso era ter o feijão com arroz e farinha no almoço, um naco de carne com osso de vez em quando pra cada um, uma caneca de kisuco e uma quartinha d’água do lado.
Isso no almoço, na hora da comida de maior sustança do dia, pois era o momento em que o dia se dividia entre o pouco do café da manhã e o quase nada da janta. Quando os meninos levantavam tinham que se contentar com o pão com café, se tivesse, ou com o mingau de farinha, de água ou com leite aguado, dependendo da situação.
Ainda assim os meninos se fartavam com alegria e felicidade. E isto porque, espertos demais, deixavam reservados outros alimentos para o acompanhamento com o que tivesse naquela hora: araticuns madurinhos, goiabas de encher a boca d’água de tanto aroma e gostosura, mamões de procedência dos quintais das vizinhanças, de melões caipiras e melancias. Os pais já sabiam dessas espertezas e não deixavam também de saborear uma talhada, um pedacinho disso ou daquilo.
Quando Julião, o chefe da família, ainda possuía um terreninho com três vaquinhas magras pastando lá pra cima do riachinho, e o gadinho era chiqueirado todo entardecer, ainda aparecia por ali dois ou três litros de leite fresquinhos, apetitosos, que fazia a festa quando misturado à farinha ou derramado por cima do cuscuz. Não há comida igual à cuscuz com leite, soando quase como unanimidade.
Mas essa iguaria de milho, o tão apreciado cuscuz sertanejo, já havia adquirido status de luxo e só era servido uma vez ou outra, assim mesmo durante o jantar. Os próprios pais da criançada não gostavam da expressão jantar, pois achava um descabimento diante do que os meninos comiam, que era o cuscuz, às vezes, e quase sempre o pão, bolacha ou biscoito com café.
E nessa hora, no momento do café à boca do anoitecer, mais uma vez os meninos traziam à mesa verdadeiras surpresas. De vez em quando inventavam de dividir um preá assado, uma nambu caçada às escondidas, um peixe pescado na barragem do Luarado. E que bonita fazenda era essa chamada Luarado, de dono tão rico e final de vida  tão medonho.
Foi exatamente por causa dessa grande propriedade rural chamada Luarado, do Doutor Laurentino Gamela, que o pai dos meninos acabou perdendo o seu terreninho. E tudo aconteceu quando começaram a chegar à região umas pessoas diferentes, vindas de outros lugares, carregando umas bandeiras vermelhas, armados de foice e facão, dizendo que iam invadir tudo que era propriedade improdutiva que havia nas redondezas.
Segundo esses desconhecidos, muito bem liderados por pessoas astutas e inteligentes, porém sabidos demais para tomar o que é dos outros, era preciso tomar as terras daqueles possuidores de grandes latifúndios e que os deixava sem produzir ou criar quase nada.
Tomando essa imensidão de terras dos seus donos, como se estes não tivessem comprado ou adquirido por herança, ou até por meios escusos, dividiriam a terra entre todos, dando a cada trabalhador aquele pedaço de chão para realmente produzir, sustentar a família e viver com dignidade. Discurso bonito que na prática não tem nenhum valor. Nunca teve, e já estava provado nas invasões que haviam feito em outras regiões.
Verdade é que esses desconhecidos, dizendo agir em nome de um movimento organizado de trabalhadores sem um palmo de terra, foram invadindo propriedades até chegarem aos limites da fazenda Luarado. Quando o Doutor Laurentino Gameleira soube da invasão e se dirigiu até lá para tomar providências, mas logo antes da porteira avistou arames cortados, animais mortos e a sede da fazenda tomada pelos invasores, nãos suportou a visão de tamanha atrocidade e bateu as botas, foi pro beleléu, vitimado por um infarto fulminante.
Não se pode negar que o Doutor Gameleira não era flor que se cheirasse, pior de que merda, como se dizia por lá, arrogante e parecendo que tinha o rei na barriga. Ali, naquela pança, como brincavam, cabia muito mais do que um reino inteiro, de tão grande que era. Mas o danado do ricaço cuidava bem de sua propriedade, criava bois, vacas e bezerros de não acabar mais.
Na terra toda dividida para produzir com mais eficiência, uma parte era reservada à plantação de capim e palma; outra, também com capim e palma, mas com os animais pastando à solta para se alimentar, e ainda outra própria para o cultivo do milho, do feijão, da abóbora, da melancia, do algodão. Muitas outras culturas existiam por ali.
Portanto, não havia nada de improdutividade como alegado pelos invasores. Então, vendo todo o seu investimento invadido tão covardemente de uma noite pro dia, com trabalhadores sendo expulsos a chicotadas, famílias inteiras tendo que correr de suas casas para não morrer, animais mortos e cenas de cortar coração, tudo isso foi demais para o velho coração do Doutor Gameleira.
Mas não obstante tal invasão, tão absurda e injustificada, eis que esses ditos trabalhadores sem um palmo de terra, acharam pouco o que fizeram na fazenda do doutor e acharam por bem tomar um pedacinho de chão, uma verdadeira vereda de mato, cipó e cobra, que ficava bem ao lado, fazendo divisa. Era a terrinha do pai de Totinha, toda a riqueza que Julião possuía.
Assim, por consequencia dos desmandos de forasteiros que eram mais que bandidos, pois chegando e invadindo o que era dos outros, matando animais, destruindo plantações, espalhando o terror, o coitado do Julião ficou impedido até de colocar os pés por lá. Quando foi alegar que aquela terra havia recebido de herança e que aquelas três vaquinhas era tudo que tinha na vida, recebeu foi um tiro de espingarda, que por pouco não lhe tirou desse mundo.
Depois disso desacreditou de vez na justiça, na política e nos políticos, em todo discurso que ouvia dizendo que aos mais pobres era assegurado isso ou aquilo. Perdeu as vaquinhas e para ter um litro de leite agora tinha que mandar a mulher entrar numa fila imensa para receber uma esmola. Ele mesmo não queria nada daquilo, porém tinha de se submeter a tais vexames por causa da filharada.
Estava mais pobre, é verdade, mas nunca desanimado nem entregando os pontos. E a família passava ainda mais necessidades porque há meses ele vinha se esforçando para juntar uns tostões e mudar o telhado da casinha, que sabia não suportar uma chuva mais pesada. O problema é que não veio a chuva temida, mas tempestade voraz e ventania faminta que, em menos de dois minutos, levou pelos ares metade da cobertura.
Pediu que cada menino corresse para debaixo de sua cama e só saísse de lá quando não suportasse mais as águas, que ele faria o mesmo com sua esposa. Deitados ali debaixo da cama, não havia nem motivação para reza ou promessa. Perguntava-se apenas porque teriam que morrer daquela forma, soterrados na própria casa ou afogados pelas águas de tão misteriosa tempestade.


                                                      continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
  
  


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