SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 13 de maio de 2011

TEMPESTADE - 4 (Conto)

TEMPESTADE – 4

Rangel Alves da Costa*


A professorinha não quis acreditar no que ouviu. Tonico desobedecer às suas ordens e se arriscar naquele fim de mundo era pra matar qualquer uma do coração. Correu pra fora da sala e começou a gritar pelo menino. Não enxergando um palmo à sua frente, completamente tomada de pavor, impensadamente correu portão afora para ver se encontrava sinais do aluno.
“Tonico, Tonico... Pelo amor de Deus, Tonico, tá me ouvindo? Só quero lhe ajudar Tonico, diga meu filho, dê um grito, faça qualquer coisa pra dizer onde você está...”. E se pôs de joelhos, com as mãos à cabeça, sentindo-se impotente demais diante daquela imensidão de chuva, relâmpagos, trovões, completa escuridão. E começou a chorar desesperadamente.
Contudo, o teimoso do aluno não havia nem saído além dos muros da escola. Estava todo agachadinho bem ao lado do portão, quietinho feito um pequeno animal que busca proteção em qualquer fenda. Mas ali era impossível de se proteger de qualquer coisa. Já estava completamente molhado, o caderninho e os lápis empoçados, embebidos pela água.
Verdade que chorava baixinho, somente para ele mesmo, porém gritando por dentro querendo ir pra casa, querendo ficar ao lado dos pais, buscar proteção em cima de sua cama de varas. Só tinha a cama dura de varas, mas naquele momento era onde mais queria estar. Mas ao perceber o estado de sua querida professorinha se sentiu culpado por aquilo tudo e correu para perto dela.
No entanto, ao sair tropeçando naquela direção só pôde enxergar um vulto correndo adiante, como alguém desesperado que vai a qualquer lugar. “Professora, professora, sou eu, Tonico... Professora pode voltar que estou aqui... Não vá me procurar não que é muito perigoso, volte, volte professora...”. Mas ela não conseguia ouvir nada.
Tonico seguiu atrás, correndo praticamente às cegas, os grossos pingos impedindo até que ficasse de olhos aberto, quase caindo nos buracos empoçados, tropeçando nos entulhos que eram trazidos pela enxurrada, até que um clarão mais forte de um relâmpago fez com que percebesse uma pessoa caída mais adiante. Correu até o local e constatou que era ela.
Chamou pelo nome, chamou de professorinha, balançou o quanto pôde, mas ela nada de responder. Desesperado com essa nova situação, sem poder levantá-la ou colocá-la nos braços, numa aflição indescritível, temendo o pior, resolveu voltar correndo até a escola e chamar os colegas para ajudar tirar a professorinha dali.
Quando viram Tonico retornar e não sentiram a presença da professorinha por perto, logo os alunos começaram a se alvoroçar. Com medo de ser agredido pelos colegas, ele pediu desculpas quase chorando de cabeça baixa, e relatou o incidente, pedindo que alguns meninos se dispusessem a acompanhá-lo para socorrê-la.
Tiquinho disse logo que aquilo não ia ficar assim não, que qualquer dia Tonico ia pagar se tivesse acontecido alguma coisa com sua boa amiga. Murilo disse que era bom cuidar logo dela e depois deixar ele preso lá fora, amarrado. Carminha gritou que ele era um safado e que lhe pagasse logo as cinco goiabas que lhe devia. Totinha, que era uma espécie de líder, gritou dizendo que deixassem de besteira e fossem logo salvar a amiga.
Saíram quatro meninos e mais Aninha, que chorava dizendo que queria ajudar de qualquer jeito e não tinha ninguém que a impedisse. Tonico logo alertou que ninguém se separasse, pois naquela escuridão qualquer um poderia cair nos buracos traiçoeiros, além de que era praticamente impossível de ouvir alguém ali pedindo socorro.
Mas assim que já se encaminhavam para o portão, avistaram um vulto lentamente vindo, tropeçando nas próprias pernas, a ponto de desabar a qualquer instante. Era a professorinha Suniá.
Isso mesmo, Suniá. Nome indígena e parecia realmente uma linda indiazinha desgarrada de sua tribo, morena de caramelo derretido, de pele que chegava vermelhar quando debaixo do sol. Bonita demais, todo mundo achava. Porém dali mesmo, de família daquela região, pobre, e somente com muito esforço para se formar para ser professora. Nos seus dezenove anos, parecia ter menos, muitos menos. Uma menina ensinando a meninos, amiga de todos, compreensiva e paciente, boa demais, adorada por todos, apenas professorinha, como gostava de ser chamada.
Mesmo sem querer, foi sendo praticamente colocada nos braços pelos alunos e levada até a sala. “Professorinha, a senhora está toda molhada e suja. Está sentindo alguma coisa, doi em algum lugar, por que a senhora está assim?”. Preocupada, Paulinha juntava perguntas ao mesmo tempo.
“Deixe ela sentar e descansar um pouquinho, depois ela responde”, falou Totinha, mandando puxar uma cadeira rapidamente. “Calma crianças, calma, eu já estou bem...”. Realmente, fora o corpo um pouco dolorido pela queda na rua, no meio do aguaceiro, até aquele instante não podia afirmar que havia sofrido maiores consequencias.
Bem próximo dali, na praça da matriz, dentro da igreja de portas totalmente fechadas, nem tanto o seminarista, mas assim que as senhoras do doutrinamento bíblico diário tomaram pleno conhecimento do que estava ocorrendo lá fora, do aguaceiro e do mundo se acabando de água, estrondo e faísca, foi um verdadeiro deus-nos-acuda.
Quando quis colocar a cabeça na rua para saber de onde vinha aquele barulho todo, o seminarista Tristão recuo rapidamente e chamou as beatas para dar uma olhada no que estava se passando lá fora por uma fresta. Depois lacrou todas as portas e disse que nenhuma delas ousasse dizer que ia sair debaixo duma tempestade daquela.
Mas as beatas, coitadas, chocadas e assustadas demais pelo que viram, nem sabiam direito no que pensar ou fazer. Prantos começaram a jorrar, os joelhos se dobraram perto do altar, braços foram erguidos, bocas imploravam piedade, pediam por tudo que Deus as livrasse de morte tão trágica, debaixo da fúria da natureza.
Filó desmaiou e começou a dar trabalho para reabrir os olhos; Socorro fazia promessas e mais promessas para que o tempo mudasse logo e pudesse sair dali viva; Custódia, praticamente enlouquecida, começou a maldizer os santos, a igreja, a religião e dizer que de nada valia tanta fé e tanto sacrifício em nome da religiosidade se iam morrer ali mesmo dentro de uma igreja. Foi preciso que o seminarista Tristão lhe acertasse um tapa bem dado para que ficasse calada.
As outras beatas só faltavam subir pelas paredes, descer o céu para entrar e pedir proteção, numa barulheira que ia do grito mais esquisito ao gemido mais medonho, todo entremeado por palavras desconexas e até gargalhadas sem motivo algum. Tristão, procurando ser paciente, apenas pedia calma, dizia que orassem e confiassem em Deus que logo aquele vexame passaria.
Contudo, viu que a coisa estava feia mesmo quando Rosinha disse que já que ia morrer mesmo então precisava se confessar. Aí vem bomba, disse o seminarista entristecido.


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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