SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 18 de maio de 2011

TEMPESTADE - 9 (Conto)

TEMPESTADE – 9

Rangel Alves da Costa*


Verdade é que enquanto os velhos pais se aperreavam, o maluquinho do filho zanzava de um lado a outro pelas ruas, numa tranquilidade que parecia de manhã ensolarada. Fabiana tinha avistado ele, mas não reconhecido. Impossível de alguém enxergar direito embaixo de um negrume tempestuoso daquele.
As chuvas molhavam sim, por isso mesmo ele estava completamente encharcado; os pingos grossos e dolorosos caíam sobre sua pele sim, mas sem provocar qualquer sintoma; os trovões barulhavam ensurdecedoramente por todos os lados, porém era como ouvir a voz do vento; a ventania feroz e veloz, que ia derrubando tudo que encontrava pela frente, simplesmente passava por ele levemente tocando e seguia adiante para destruir; os raios e relâmpagos pareciam apenas fogos faiscando em noites de festa junina.
Por isso mesmo Teté zanzava de cima a baixo, até gostando daquele aspecto diferente no dia e por não encontrar ninguém para lhe aborrecer. Nesse vai e vem, passou defronte à escolinha e Tonico avistou-o, numa das vezes que se esgueirava pelos cantos para saber se a situação já estava mudando.
Aliás, era ele quem parecia mais preocupado com o estado de saúde da professorinha Suniá, principalmente porque havia dado causa ao problema. Mas ela procurava ao máximo demonstrar que estava bem, que estava simplesmente molhada e suja de lama, mas que não sentia mais nada pela queda sofrida e pelo repentino desmaio. Por dentro, contudo, a situação era bem diferente.
Procurava mostrar normalidade para não transformar aquela situação já preocupante demais numa coisa insustentável. Os alunos ainda choravam, ainda estavam amedrontados com a chuva pesada e incessante e o estrondo dos trovões. Muitos deles gritavam desesperados pelos pais, outros pediam para ir embora assim mesmo, e sem falar em todos os rostos cheios de medo e pavor, nas mãos que tapavam os ouvidos para não ouvir mais tanto barulho.
Alguns ficavam deitados debaixo das cadeiras, outros se escondiam no vão do birô, e ainda alguns se juntavam agarradinhos pelos cantos. E tudo na maior aflição, num indescritível e dramático quadro de impotência diante de tanto assombro. Suniá ficava praticamente o tempo todo pedindo calma, dizendo que suportassem um pouco mais, pois logo aquilo tudo passaria e todos poderiam voltar às suas casas. Mas ela sabia que tão cedo a tempestade não passaria.
O pior é que os minutos passavam, o tempo avançava, e talvez já fosse perto das quatro horas da tarde. Depois disso tudo ficaria ainda pior, pois logo o tempo descambaria para os preparos próprios para entrar no fim do dia. Às cinco horas os meninos já deveriam estar retornando, às seis comeriam seus alimentos ou apenas pensariam neles.
Era o momento de estar em casa junto aos familiares, juntos aos brinquedos, aos cavalos-de-pau, às revistinhas com seus herois, às bolas de plástico, ao cineminha da réstia na parede, às bonecas de pano, às molequinhas traquinas de vestidos rendados, lá dentro da casinha de brincadeira num cantinho da casa. Mas naquele dia não, naquele dia nada aconteceria assim.
Desde o início da tempestade que o tempo vestiu-se de luto e assim permaneceu. A tarde era noite completa, e noite das mais escurecidas, sem lua, sem estrelas, sem os uivos nos montes, nada. Apenas o negrume terrificante, a escuridão medonha se espalhando por todos os cantos e tomando conta de tudo. Somente os clarões cortando as nuvens carregadas diziam que na terra existia uma vida em desespero.
Quando a chuva parasse, se parasse um pouco mais tarde, já seria noite de relógio, de tempo. E tudo já estaria normalmente escurecido, sem falar nas devastações que encontrariam por todos os lugares. Mas tudo isso era apenas suposição diante da incansável e persistente fúria da natureza. Tudo isso a professorinha fica imaginando, em tempo de enlouquecer sem saber o que fazer, cheia de dores, com um terrível mal-estar e sabendo que estava doente. O que fazer meu Deus? Perguntava-se aflita.
Seus olhos ardiam parecendo gotejados por pimenta, queimavam feito brasa; seu corpo pinicava, como se agulhas fininhas a todo instante fossem penetrando nele; sentia o corpo quente, mas já apresentando tremores de um frio cortante. Começou a tossir. Ainda assim levantava, procurava acalmar os meninos, andar de um lado para o outro, abraçar uma menina mais aflita, passar as mãos pelos cabelos de um aluno desesperado.
Quando abraçou Aninha pedindo que se lembrasse de uma cantiga de roda muita bonita, a menina reconheceu no mesmo instante que a professorinha não estava bem. E gritou: “Pessoal, a professora está doente!”.
No instante seguinte e mais de cinco alunos já estavam rodeando Suniá para saber o que estava sentindo. “Eu estou bem, meus filhos. Estou muito bem, podem acreditar...”, dizia ela, procurando não complicar ainda mais a situação. “Não tá não professora. Veja aqui Marilda, olhe se ela não está queimando de febre...”.
Tonico passou a palma da mão pelo rosto dela e fez o diagnóstico completo, com a autoridade de conhecedor daqueles sintomas e causador do problema: “Quando caiu lá fora naquela água imunda correndo pelo chão, sem querer ela bebeu um bocado daquela imundície e agora deve tudo estar complicado por dentro. E não apenas a água que ela bebeu, mas o tombo que tomou e a chuva pesada caindo sobre o seu corpo todo. Minha avó dizia que chuva desse jeito se chama doença, se chama coisa ruim, pois água nova demais chega empesteada de tudo que é contaminação. Assim é que ela dizia, por isso não deixava a gente tomar banho em água de trovoada de jeito nenhum... Falava até de um parente meu que tinha morrido...”.
“Quer para com tanta explicação Tonico, não acha melhor a gente pensar logo no que pode fazer pra ajudar a coitada da professorinha doente? Alguém tem um comprimido aí, algum remédio que a mãe deu para o caso de aparecer uma febre ou uma dor de cabeça? Pelo amor de Deus, mas pensem logo o que a gente pode fazer...”. Disse a assustada e agora preocupada Carminha.
E Carminha ainda se virou pra Tonico e disse que se a professorinha ficasse logo boa ele perdoaria as cinco goiabas que ele lhe devia. Era a promessa que fazia a doçura de menina. E o próprio Tonico prometeu que nunca mais pulava o muro para catar fruta no quintal de ninguém. E promessas e mais promessas foram surgindo, até se ouvir uma voz bem fininha lá escondidinha num canto da sala: “Ela vai ficar boa, pois eu já rezei pra Nossa Senhora das Flores...”.
“E existe essa santa?”, perguntou Tiquinho. E mesmo sem quase poder falar, foi a própria professorinha que respondeu: “Existe, no coração e na fé de cada um de nós ela existe. E como deve ser linda Nossa Senhora das Flores...”.


continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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