SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 12 de maio de 2011

TEMPESTADE - 3 (Conto)

TEMPESTADE – 3

Rangel Alves da Costa*


A professorinha pediu para todos continuarem na sala que ela mesma iria verificar o que realmente estava ocorrendo. Ao atravessar o pátio e chegar ao portão da escola, teve que recuar sem chegar ao muro.
Bagaceiras se espalhavam pelo ar, levantadas fortemente pelo vento veloz e barulhento, tudo parecia querer sair do lugar, os trovões começaram a soar mais forte, raios cortavam o ar de par em par, a cidade parecia um deserto escurecido e feio. E os primeiros pingos começaram a cair já grossos e fazendo subir pelo chão um cheiro misto de terra molhada e fogo crepitante.
Tudo rápido e apavorante demais, tremendo de medo e com os nervos abalados que mal conseguia se manter em pé, a professorinha ficou sem saber o que fazer. Não podia deixar os meninos irem embora naquelas condições de jeito algum, não tinha como mandar avisar aos pais que viessem buscar os seus filhos, não podia, ela mesma, ir de casa em casa entregando cada um a sua família.
Alguns daqueles alunos moravam nos arredores da cidade, outros ainda mais distantes, nos sítios e fazendas. Diante daquela tormenta toda nem os que moravam por perto conseguiriam chegar em casa. O pior é que dificilmente algum pai ou mãe se arriscaria sair debaixo daquele tempo medonho, principalmente sabendo que os seus filhos estavam protegidos na escola.
Realmente, mesmo com toda proteção possível, debaixo de guarda-chuvas e protetores, ainda assim seria muito arriscado ao menos colocar a cabeça na janela, sair um pouco na porta. Os raios incessantes, cortando o céu feito navalha afiada, fazendo um intenso barulho de lata sendo rasgada, sempre acompanhados de trovões ruidosos e ensurdecedores, causavam risco demais para qualquer um que quisesse se arriscar.
Mas meu Deus, o que fazer agora, se perguntava a professorinha, como que paralisada diante daquela chuvarada toda, daquele negrume tomando conta de tudo. Somente com as luzes dos raios era possível enxergar as árvores envergadas, as águas já correndo por cima de tudo, pequenos animais desesperados procurando proteção.
Sinhá Culó temia pelo fim do mundo. Com medo de tudo, a idade não permitindo muita movimentação, ainda assim tentava correr de um lado para o outro colocando vasilhas debaixo das pingueiras. Parecia estar do lado de fora. Já havia coberto o espelho por causa dos raios, nada que alumiasse ou brilhasse tinha ficado sem um molambo por cima.
Além daqueles irrefutáveis sinais do céu, certificando que o mundo estava realmente acabando, Sinhá Culó temia ainda morrer com a casa caindo por cima, se despedaçando em cima da família. A casa tão antiga quanto ela, toda no barro e na ripa, em muitos lugares amparada por ripões de madeira, não estava pronta para suportar nem uma chuva forte, quiçá um temporal igual aquele.
Timbé, seu velho esposo, ficava tentando enxergar o tempo lá fora através de um dos muitos buracos existentes na parede de barro. Era tristeza demais, medo demais, angústia demais, tudo junto, tudo doendo de uma vez só. E ficava imaginando por que o pobre tinha de passar por mais aquela aflição.
E ficava imaginando de coração dolorido. O tempo secava que ficava ano e mais ano sem um pingo de chuva. Tudo começava a ficar mais pobre em cima da pobreza já existente, qualquer bichinho de pasto ou quintal começava a morrer, tudo se perdia, até a esperança. Então começavam as rezas, as preces e as promessas para cair ao menos uma chuvinha. Mas o tempo teimoso continuava firme, com o sol cada vez mais quente, o calor aumentando, e só faltando secar de vez o suor. Cacimba não existe mais, barreiro secou, tanque nem se fala. E tudo ficando nas mãos de Deus. E quando menos se espera vem essa desgraça toda, assustando, chovendo demais, trovejando e relampejando como se quisesse acabar com tudo, com cada gota de chuva que cai parecendo que vai derrubar um boi. E o pior é que chuva assim nunca prestou pra nada, nunca fez vingar nada na terra, nunca serviu pra um plantio nem para a esperança renascer. Chuva assim só presta pra acabar com tudo, pra destruir ruas e jardinagens, fazer estourar os bueiros e as imundícies começar a correr por todo lado, pra derrubar casa e matar gente e bicho. Matar gente e bicho sim, pois um raio desses que caia perto de um é morte certa, e matar bicho porque gado magro, com o couro e o osso não pode ver trovoada nem muita água caindo por cima que começa a fraquejar, a tropeçar, e caindo acabou, pois não conseguirá mais força pra se levantar. E quem mais sofre é gente como nós, pobre demais, morando em tapera, que sabe que a qualquer instante tudo pode desabar por riba. E o pior é que a gente não pode fazer nada, não tem pra onde ir, nem pode sair daqui. Só mesmo Deus, só mesmo Deus!...
Enquanto o velho pai assuntava sozinho em pé no seu canto, com o rosto voltado para o buraco da parede, De Lourdes, a filha solteirona, já ficando moça velha, juntava toda sua fé diante do velho oratório num cantinho da casa, de rosário bento dançando entre os dedos e a boca que não parava de se mexer, numa prece que saía da alma. Orava devotadamente para Santa Bárbara, protetora contra os raios, trovões, tempestades e morte trágica:
“Santa Bárbara, que sois mais forte que as torres das fortalezas e a violência dos furacões, fazei que os raios não me atinjam, os trovões não me assustem e o troar dos canhões não me abalem a coragem e a bravura. Ficai sempre ao meu lado para que possa enfrentar de fronte erguida e rosto sereno todas as tempestades e batalhas de minha vida, para que, vencedor de todas as lutas, com a consciência do dever cumprido, possa agradecer a vós, minha protetora, e render graças a Deus, criador do céu, da terra e da natureza: este Deus que tem poder de dominar o furor das tempestades e abrandar a crueldade das guerras. Santa Bárbara, rogai por nós! Por Cristo, nosso Senhor, Amém!”.
Depois de fazer o sinal da cruz e erguer um pouco a cabeça, perguntou ao pai, ainda imóvel no seu lugar: “Pai, o senhor acha que esse exagero de chuva com tanto raio, trovão e ventania, vai passar logo?”
E o homem respondeu: “Minha fia, num dá nem pra enxergar nada que se passa lá fora. Só vejo num repente quando surge o clarião, mai é coisa muito ligeira. Se ao meno eu visse arguma coisa lá pras banda do horizonte aí era diferente e eu podia dizer arguma coisa, mai assim tá difici. Mai pelo barulho que ouço dos pingo que cai e dos trovão lá por cima, posso agarantir que vai entrar pela noite, cortar a madrugada e daí só Deus sabe quano vai parar. É chuva demai de uma veiz só minha fia, é água demais no lugar quem nem precisava disso tudo. O pior é quano a chuva parar que vem outra danação, com o gado caído, as casas derrubada, as estrada que num presta mais, os tanque que sangraro, tudo feio e esquisito, precisano ser remendado. E sem falar até lá, com casa caindo com gente dentro, pessoa sem saber o que fazer, gente que tá espaiada pelo mundo pruque num teve tempo de vortá pra casa. É uma tristeza, minha fia, é uma tristeza...”.
Não só tristeza, como agonia, desespero e dor. Na escolinha a professora tentava acalmar as crianças que começavam a querer os seus pais, suas casas, a ficarem nervosas e espantadas demais. Já tinha gente chorando. E a pobre moça gritando, implorando ajuda de outros funcionários da escola, mas ninguém atendia. Quem continuava por lá estava trancado nas salas, escondido, embaixo dos móveis, desmaiado.
Foi quando ouviu Paulinha gritar: “Professora, Tonico disse que ia pra casa e acabou de correr daqui...”.


continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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