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quarta-feira, 4 de maio de 2011

O HOMEM DESFEITO (Crônica)

O HOMEM DESFEITO

Rangel Alves da Costa*


Dizem que o pintor da Monalisa, o renascentista italiano Leonardo da Vinci, é autor também de uma obra quase totalmente desconhecida ou nunca comentada pelos estudiosos da arte. Trata-se de “O Homem Desfeito”.
No “Homem Desfeito” talvez esteja a verdadeira genialidade do múltiplo artista que era Da Vinci. Ainda que a Monalisa seja reconhecida como a expressão máxima de sua pintura, verdade é que as condições nas quais a outra obra fora produzida e o seu surpreendente resultado final, qualificam-na com grande superioridade.
E por que, se indagaria, vez que nada poderá superar aquele sorriso enigmático, misterioso e envolvente daquela dama e sua simplicidade. Ora, simplesmente porque em “O Homem Desfeito” a pintura não revela nada mais do que a ideia de que no centro da tela existia um homem. Isso mesmo, existia, e por mais que tenha sido pintado em cores fortes não existe mais.
E não existe mais porque o homem pintado por Da Vinci foi por ele mesmo sendo desfeito ao longo do tempo para mostrar como o ser humano vai perdendo aos poucos suas forças essenciais, sua substância vital, até se tornar um nada, um vazio, algo morto. Por isso o nome de o homem desfeito.
Então, a primeira coisa que Da Vinci fez foi retratar o Duque de Salmadia, um belo e jovem rapaz, nas suas vestes imponentes e guarnecido por suas armas e honrarias. Como era de se esperar, meticulosamente a obra foi sendo realizada e ao cabo de dois meses a pintura ficou pronta. Contudo, enquanto dava os últimos retoques o pintor tomou conhecimento que o duque havia sido morto em batalha.
Como era uma obra de arte feita por encomenda, Da Vinci nem procurou a família do falecido para entregar o retrato. Imaginou logo que, diante da situação e da tragédia que vitimara o rapaz, bem que poderia dá-la outra destinação e mostrar, a partir daquela pintura, toda a fragilidade, a máxima fragilidade da vida.
Assim, Da Vinci iniciou um longo processo para desfazer, pouco a pouco, toda aquela arte retratada. Bem que poderia desfazer tudo rapidamente, com rápidas pinceladas, no entanto optou por trabalhar compassadamente, ao longo do tempo, de modo a se aproximar o máximo possível de como a vida também vai destruindo o ser humano.
Primeiro retirou do retrato do belo e jovem duque todas as armas e honrarias que lhe davam grande imponência e suntuosidade. Sem aqueles símbolos, o homem ficou apenas com suas vestimentas luxuosas e o brilho da nobreza a qual pertencia. Deixou assim por cerca de seis meses, até certificar-se que o rapaz já deveria estar acostumado a viver sem os tais símbolos, porém ainda com o luxo da roupa.
Contudo, antes de desfazer daquelas roupas brilhantes e ainda cheias de adornos, Da Vinci foi modificando o semblante do jovem duque. Agora não tinha mais o status de antes, então foi mais entristecido e com marcas surgindo pelo rosto jovial. Em seguida, o retratado foi ficando completamente nu, sem nada que lhe protegesse do frio ou cobrisse suas vergonhas. Se Da Vinci quisesse poderia ter acrescentado nesse momento uma feição de verdadeiro espanto.
Deixou o duque na sua nudez durante cinco anos. Ao retornar ao retrato, a primeira coisa que fez foi torná-lo mais flácido, mais arqueado, mais triste. Acrescentou apenas algumas rugas, pois parecia que a própria pintura envelhecia por si mesma. Deixou-o mais magro, mais esquelético, cabeludo, sem qualquer atração no rosto nem no corpo. Feio.
Nesse estado, o retrato ficou esperando a volta do artista por mais cinco anos. E quando retornou, após modificar os traços do rosto e do corpo, envelhecendo-o e fragilizando ainda mais, Da Vinci amputou-lhe uma perna e um braço, além de tirar quase todo o brilho dos olhos.
O retrato ficou mais dois anos nesse doloroso estágio. Mas um dia, ao retornar para dar mais um passo no seu desfazimento, e ele mesmo já adoecido e fragilizado fisicamente, quase não reconhece o retrato. O homem tinha uma expressão de uma insuportável agonia, como se quisesse gritar que não estava mais suportando, que queria morrer.
Por piedade, passou o pincel pelo resto do corpo e desfez completamente o homem, deixando apenas a paisagem ao fundo. E o quadro ainda continua lá, e eu continuo aqui, inventando essas histórias mentirosas para você acreditar. Até que um dia me venham com um pincel.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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