SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 29 de maio de 2011

TEMPESTADE - 20 (Conto)

TEMPESTADE – 20

Rangel Alves da Costa*


Na solidão dos seus últimos dias, somente quando a tempestade passasse e se dessem conta de que morava ali uma velha feiticeira que havia desaparecido é que poderiam arrombar a porta para procurá-la. Por enquanto somente visitantes desconhecidos, espíritos de duvidoso caráter e um aguaceiro imundo velavam a mulher no seu último leito terreno. Se assim pudesse ser chamado.
Não se pode nem afirmar qual o horário agora naquela cidade e região. Não importava se três, quatro ou cinco horas se tudo era noite de breu, numa pretidão de não se enxergar um passo à frente. E ninguém podia avistar nada não apenas pelo negrume que tomou conta de tudo, mas também pelo vento dilacerante e pelos pingos grossos demais, caindo na chuva que parecia uma cachoeira descendo das nuvens.
Os dois campos de futebol já haviam se transformado em leitos de rio, o riachinho já havia transbordado de tal forma que engoliu pocilgas, hortas espalhadas pelas margens, cercas e cercados, e no seu curso destrambelhado e feroz devastado e levado toda a mata ciliar, carregado furiosamente os animais que encontrava pela frente.
Era um riachinho, como chamavam, mas parecia um rio correndo faminto, sujo, cheio de paus e troncos, tudo que pudesse arrastar. Mais de dez casas que ficavam próximas às margens já haviam sido completamente destruídas e muitas outras já estavam abandonadas desde cedo pelos moradores. Se não tivessem saído logo agora seria tarde demais, pois seriam levados juntamente com restos de móveis, telhas e paredes.
Folhas de flandres que serviam de cobertura para casebres, tábuas, papelões, telhas de amianto, madeirites, tudo isso zanzava pelo ar como folhas ao vento. Um zumbido ensurdecedor que ninguém sabia ao certo de onde vinha reinava ruidosamente pelos ares. Era a voz da ventania, furiosa demais, incansável e arrogante, não deixando em pé sequer uma árvore das muitas existentes nas praças. Postes pendidos e outros caídos, fiações misturadas às águas, feição da total destruição.
A única escola que ainda continuava com o telhado incólume e paredes sem serem ameaçadas era onde estavam abrigados a professorinha Suniá e seus alunos. Em todas outras, públicas ou particulares, muitos danos já estavam confirmados, se alguém pudesse observá-los. Muros caídos, paredes rachadas, desabando ou já deitadas, telhados há muito esvoaçados numa fragilidade inacreditável.
Verdade é que somente a presença divina em meio à tragédia contínua e imensa para que a maioria daquelas moradias não fosse completamente destruída. Quando se diz que os mais pobres e mais carentes às vezes possuem uma proteção diferenciada, tal assertiva poderia ser fundamentada naquela ocasião. O que fazia com que choupanas, barracos, taperas, casebres, verdadeiros ninhos de barro continuassem de pé?
A garagem da prefeitura já havia sido completamente destruída, carros estavam muito danificados lá embaixo, ninguém tinha notícias do vigilante. O telhado do clube municipal já havia sido completamente destruído, pilastras balançavam, salões ficariam a céu aberto a qualquer instante, a piscina se misturava num aguaceiro só que tomava conta de tudo. E em muitas outras edificações se somavam grandemente as destruições.
Entretanto, o barraco de Purgentina se balançava todo, estremecia que parecia voar a qualquer instante, mas continuava de pé; a tapera onde Zezéu e Geromilda criavam os seus oitos filhos, todo levantado na ripa e no barro, encoberto por telha, papelão e tábua, continuava erguido; a moradia do viúvo Titonho, já chegando perto do riachinho, que nem porta tinha, ainda continuava no seu lugar. Não se sabe até quando, mas a fúria da tempestade e da ventania continuava preservando esse povo, essa gente pobre demais.
O mesmo não acontecia com muitos outros, infelizmente. Famílias inteiras ficaram sem teto e sem nada, só restando a vida por uma providência divina. Fugiram a tempo para a casa dos amigos, dos parentes e até desconhecidos. A grande preocupação era saber para onde todos fugiriam a partir daí, pois como as coisas iam ninguém ficaria nas suas moradias por muito tempo.
Muito se comentava, quando as palavras de medo e de aflição deixavam, quando os choros e os gemidos permitiam, que uma verdadeira leva de pessoas havia corrido em direção aos matos, aos descampados, procurando grutas, fendas nas rochas e montanhas onde se proteger. Pelo que diziam, tinham certeza que muitas pessoas, à moda dos tatus e pebas, agora estavam entocados nas redondezas.
Todos os santos que protegiam aqueles moradores da região certamente haviam achado muito estranho o que vinha ocorrendo nas últimas horas. Nunca foram tão requisitados, chamados para proteger, ajudar, salvar. Santa Bárbara, a protetora contra dilúvios, tempestades e vendavais, teve que pedir permissão superior para também se tornar onipresente, vez que todo mundo chamava pelo seu nome, acendia uma vela em seu favor, erguia as mãos aos céus implorando para que fosse até ali ajudar.
Por todos os lugares rezas, promessas, orações. Velas não existiam mais, os santos já eram carregados de mão em mão, muitos também pelas águas, pois muitos oratórios, pequenas capelas familiares e outros locais de ofícios haviam sido tomados pelas águas ou completamente destruídos.
Alguém disse que viu uma pessoa se jogando nas águas para salvar um santo que ia sendo levado e foi tragado gulosamente pela sua força. Já outro disse que viu com os dois olhos que Deus haveria de comer quando viu a mesma pessoa sendo salva do afogamento pelo santo, que a ergueu pelos braços e a colocou em local seguro. Mas qual o local seguro ali?
Como visto, mesmo naqueles momentos de aflição as lendas, as conversas e os mitos também emergiam com vigor. Tibério dizia à sua velha esposa que tudo aquilo era castigo divino pelo estado de perdição que a humanidade estava, e que se não morressem pelas águas, certamente mais tarde morreriam pela fúria do fogo. Felônio era da mesma opinião, só que culpava a safadeza demasiada naquelas meninas novas que precisavam respeitar mais a si mesmas e às suas famílias.
O apaixonado comunista Tiburcino, um velho e aposentado estivador de todos os portos do mundo, bradava raivoso suas razões para todo aquele caos. Segundo ele, tudo que viesse da natureza, mesmo naquela proporção e ferocidade, teria que ser visto com normalidade, pois não era a primeira vez que caía uma tempestade assim.
E dizia ainda que o problema todo estava nos governantes, nos administradores públicos que só pensam em roubar e jamais fizeram qualquer tipo de obra que impedisse grande destruição quando surgissem as intempéries. Sem infra-estrutura, sem local ideal para o escoamento das águas, sem uma eficiente coleta de lixo, com o mato tomando conta de tudo e a sujeira se espalhando por todo o leito do riachinho, não seria de se esperar outra coisa quando chovesse.
Contudo, o pobre do comunista falava sozinho. Há muito tempo chamado de maluco, ninguém dava ouvidos ao que o homem dizia. Enquanto isso o mundo continuava se acabando lá fora, lá dentro, por cima de tudo. E a próxima casa que teve seu telhado jogado pelos ares foi do menino Totinha. Preocupado demais com saúde da professorinha, nem imaginava o que sua pobre família estava passando.


continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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