MEU BOM KAMIKAZE
Rangel Alves da Costa*
Conheci e fiz grande amizade com uma pessoa que em muitos aspectos parecia um kamikaze. Eu dizia, o alertava para não se meter naquilo que não lhe dizia muito respeito, mas o seu coração bondoso demais, sempre preocupado em pacificar os outros, de repente lhe fazia de vítima daquilo que queria salvar.
Chamava-o de kamikaze pelo seu voo maluco em direção ao praticamente desconhecido, se metendo onde não era chamado apenas para prestar solidariedade, opinar com suas palavras inteligentes, dar conselhos nem sempre ouvidos.
O outro kamikaze, o japonês, era um suicida consciente que ia morrer por um ideal bélico, por amor à pátria nipônica, por ideais de honra tão arraigados na cultura milenar daquele povo dificilmente reconhecedores da derrota.
Mesmo com atos parecidos aos dos pilotos japoneses que se lançavam com seus aviões carregados de explosivos contra os barcos inimigos, meu amigo não agia consciente do suicídio e nem jamais pensou em praticar tamanha loucura. Seus atos de bravura sempre foram para salvar e não destruir a si mesmo nem a ninguém.
Ocorre que a incompreensão o tornou praticamente num verdadeiro suicida. Tamanha era sua preocupação com o bem-estar, a felicidade, a amizade, o amor e a união entre os outros, que se entregava totalmente aos objetivos de fazer juntar o que estava se separando, unir aquilo que se desligava, fazer retornar o amor onde o rancor queria imperar.
Se soubesse que desconhecidos estavam a ponto de terminar uma união conjugal de muitos anos, lá ia ele, como quem não sabia de nada, se metendo no meio dos dois para compreendê-los e fazer tudo para resolver os problemas. Com seu coração grandioso e palavras de grande força, muitas vezes até que conseguiu realizar coisas que pareciam impossíveis, mas na maioria das vezes foi incompreendido e rechaçado como um cão vira-lata que entra numa mansão.
Sem jamais ter experimentado qualquer tipo de entorpecente, cismou de freqüentar redutos de traficantes e viciados para tentar tirá-los daquela vida e mostrar os caminhos bons do mundo sem drogas. Só foi lá duas vezes, pois disseram que se voltasse podia se considerar um homem morto.
Não voltou, mas foi procurar as famílias de dois rapazinhos conhecidos que o acaso os fez encontrar por lá. Dessa vez foram as famílias que o ameaçaram e disseram que se voltasse ali com mentiras iriam prestar queixa na polícia. Nessas encrencas é que se metia.
E eu o chamava para conversar e insistentemente dizia que se preocupasse mais com a própria vida, com os seus escritos, com os seus estudos, com o seu trabalho, com os seus sonhos. E ele concordava com tudo que ouvia e dizia que dali em diante realmente mudaria, procuraria deixar que os outros mesmos resolvessem seus problemas.
Mas não durava muito e lá estava ele novamente sentado nos bancos das praças ao lado dos namorados e falando sobre a importância do namoro, como estes devem se respeitar e sobre a importância do casamento. Não era difícil ser visto apartando brigas de vizinhos, de irmãos, de desconhecidos. Um dia quase foi atingido mortalmente por causa desse costume.
Outro dia, sem querer, descobri que o meu amigo estava passando por sérias necessidades. De tanto se preocupar com os outros, de viver para os outros, perdeu o emprego. As contas todas atrasadas, praticamente não tinha nem do que se alimentar. Sem pretender ser intrometido, perguntei se estava tudo bem e ele disse que não. E o vi chorar pela primeira vez.
Desabafou, mas estranhamente não falou sobre ele. Disse apenas que estava muito triste porque não tinha mais o que tirar da dispensa de casa para dar aos mais pobres. Então perguntei se ele se sentia rico ou pobre.
E não teve jeito, tive que acreditar naquela imensa riqueza em pessoa. E um dia, já fragilizado demais pelas angústias e tristezas dos outros, deu seu último voo. Não foi suicida, mas foi um voo kamikaze.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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