TEMPESTADE – 13
Rangel Alves da Costa*
Ao perceber que as duas desafetas estavam dentro do confessionário, Socorro com medo de Antonieta, e agora Antonieta com medo de Minervina, e tudo por causa de traição e safadeza, o seminarista Tristão se apressou a trancar a porta de chave e depois anunciar:
“Não é isso que querem? Agora podem se matar aí dentro, podem soltar as raivas, as verdades, as mentiras, os cachorros, o que for. Só fiquem sabendo de uma coisa, qualquer coisa que fizerem aí ou que disserem aí estarão bem diante dos olhos e dos ouvidos do Senhor. Desse modo, através da ação vocês estarão demonstrando o que realmente são. E talvez não tenham nem tempo de sair daí, pois vão diretinho para o lugar dos infiéis, queimar suas carnes podres nas labaredas do pecado...”.
Depois se virou pra mulher do canivete, Minervina, e falou: “Coisa bonita, Dona Minervina, agora uma cangaceira na igreja do Senhor, armada e ameaçando retalhar pessoas. Deus sabe o que eu deveria fazer com esse canivete. Dê-me aqui agora mesmo essa arma, chegue...”. E a mulher desconfiada, de cabeça baixa, envergonhada, colocou o canivete na mão do seminarista.
Ao receber o objeto Tristão logo esbravejou: “Mas que canivete algum sua mentirosa. Já viu canivete desse tamanho, com uma lâmina fina e afiada desse jeito? Isso aqui é um punhal matador Minervina, uma arma daquelas que a lei proíbe que qualquer um ande por aí portando. Já sei o que vou fazer. Quando a chuva passar vou entregar essa arma ao delegado e pedir providências. Certamente ele vai mandar lhe intimar e terá que ir prestar esclarecimentos dos motivos de andar armada desse jeito, quem ia matar, o que ia fazer com uma desgraça afiada dessas...”.
Nessas alturas a mulher já estava ajoelhada aos pés do rapaz, implorando por tudo na vida que ele não fizesse isso não, pois era a maior desonra pra uma mulher ser presa, correndo o risco de os outros presos pegarem ela pra fazer safadeza. Ao pronunciar essas últimas palavras, ouviu-se uma profusão de gargalhadas, tendo uma das risonhas perguntado como ela ia dar conta de tudo. Já outra disse que se fosse assim ela não ia querer ser solta mais nunca.
Mais adiante, ainda de joelhos, a mulher disse numa vozinha de arrependida: “Logo eu seminarista Tristão, que tinha um segredo bom pra lhe falar? Não quer ouvir não?”. E Tristão logo retrucou: “Se for safadeza quem vai lhe flagrantear sou eu, amarrar dos pés à cabeça e quando a tempestade passar entregá-la à autoridade policial. Então diga, pode dizer”.
“Mas é melhor que não seja aqui não, senão pode perder o encanto. Vamos ali pra debaixo da cruz que eu lhe conto baixinho”, disse Minervina, já segurando no braço dele pra levantar. Meio sem jeito, até envergonhado, o seminarista puxou-a pelo braço em direção ao local indicado.
E Minervina foi rápida, falando baixinho, mas com segurança: “Eu ia falar com você depois de encerrar o doutrinamento de hoje, mas infelizmente aconteceu isso tudo, essa tempestade inesperada e essas aporrinhações. Mas sabe o que é, ainda ontem eu tava proseando com aquele maluquinho Teté. Sabe quem é ele, não sabe? Pois é, gosto de conversar com ele porque ouço dele coisas muito engraçadas, histórias sem pé nem cabeça, mas que deixam a gente contente só de ouvir ele falar. Mas ontem ele me disse uma coisa que depois eu fiquei imaginando se fosse mesmo verdade. É que ele me disse que sabia quem tinha namorado e quem não tinha e depois falou que tinha certeza que a professorinha Suniá só não tinha namorado porque o único homem que ela amava mesmo tinha preferido ser santo. E sabe quem era esse homem? Você seminarista Tristão, você mesmo...”.
Ao ouvir tal história foi como se o mundo viesse abaixo. Logo agora ouvir isso, pensou. Meu Deus, meu Deus, dai-me forças nesse momento. Não era para ouvir isso agora não, de jeito nenhum. Ficou dizendo a si mesmo e sem saber no que pensar ou fazer. “Alucinações do bom Teté, só isso. A insanidade faz com que as pessoas inventem muitas coisas. Agora vá e muito obrigada. Está perdoada, agora vá...”. Foi o que conseguiu dizer, sentindo-se completamente gelado, com um vazio imenso por dentro.
A seguir se ajoelhou, nem quis mais se importar com o barulho que as mulheres faziam, juntou as duas mãos diante do peito, baixou a cabeça e começou a falar com o lado homem que era, com o lado apaixonado que era, com o lado dolorido que de vez em quando e quase sempre lhe açoitava:
“Suniá, Suniá, minha doce e bela Suniá, onde estais agora minha linda flor? O quanto eu faria para estar diante de tua meiga face, dos teus lindos olhos, da tua presença encantadora. Suniá, minha Suniá, quanto amor tenho por ti e guardo dentro de mim feito um vulcão apaixonado, mas que não pode explodir agora para as lavas não chegarem aos pés do Senhor. Como sofro por tudo isso Suniá, como padeço por te amar tanto e, mesmo sabendo desse amor imenso, ter que optar pela vida sacerdotal para atender um pedido, uma promessa feita pela minha falecida mãe. Oh, doce Suniá, se entendesse esse meu sofrer sofreria comigo e talvez uma lágrima sua, uma só lágrima, fosse o bastante para lavar o passado e pedir a vida que nos abraçasse como apaixonados que somos. Sabemos que nos amamos um ao outro, sabemos que nos olhamos apaixonados, temos a máxima certeza que nascemos um para o outro, temos plena consciência do quanto seríamos felizes se pudéssemos, como as outras pessoas, fazer valer esse amor que nos ama, mas que impiedosamente nos afasta. Por não poder suportar tanta aflição, tanto amor que tenho guardado para te dar, tenho que me submeter ao destino pretendido pelos outros e me recolher à vida religiosa, ao silêncio angustiante da vida religiosa, para que tua presença não desconfigure totalmente o ser prometido que sou. E não sabes, minha doce amada, minha brisa suave do entardecer, o quanto sofro dentro daqueles muros do seminário, dentro das paredes daquela vida em quase clausura, dentro dos dias e das horas que me consomem porque estou diante de ti, da tua presença, da simples ideia de ver você passar. E em quantos momentos, da oração necessária ou da prece para que sofra menos, lágrimas caem e molham as escrituras sagradas que tenho ao alcance? Doi demais minha amada, as cores da manhã com você distante, o brilho do sol sem nos alcançar passeando pelos campos de mãos dadas e corações sempre unidos. E os sonhos e os devaneios, as quimeras e as fantasias? Não sabes, meu amor o quanto tenho sonhado ao teu lado, sorrindo feliz, dizendo palavras bonitas, lendo poemas de amor e de fé, cantando baixinho uma linda canção de amor e voar, e depois, e depois entregar uma flor, olhar bem dentro do teu olhar, tocar tua pele macia com a mão e aproximar o meu do teu rosto e murmurar pedindo um beijo, pedindo outro beijo, forçando levemente um abraço, sair por aí, colhendo flores do campo, desenhando pelo ar moinhos de vento, subindo a montanha para agradecer a Deus e lá de cima passear pelas nuvens, conhecer os astros e depois descansar, repousar no teu peito e dizer feliz que te amo...”.
E pensaria ainda mil coisas, viajaria infinitamente na bela e triste imaginação, se não fosse despertado pelo barulho que fez quando alguém começou a bater com força na porta. “Abra, quem taí abra. Sei que tem gente aí, abra, pois preciso de um remédio depressa pra salvar a professorinha Suniá que tá muito doente...”.
Professorina, Suniá, doente, salvar, bastou ouvir tais palavras para que Tristão ficasse completamente desesperado.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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