SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 19 de maio de 2011

TEMPESTADE - 10 (Conto)

TEMPESTADE – 10

Rangel Alves da Costa*


Contudo, chegou o momento que a professorinha Suniá não suportava mais a desconhecida doença lhe afligindo e revelou aos meninos que realmente não estava se sentindo muito bem. Pediu que dois deles fossem com muito cuidado até a sala da diretora e trouxessem os remédios que encontrassem na estante, todos.
A sala da direção ficava apenas do outro lado da sala onde estavam, mas para sair dali, ultrapassar o pequeno pátio e chegar até lá seria um sacrifício. A escuridão deixava todos sem norte, boa parte do telhado não existia mais, estar ali no pátio era quase como ficar no meio do tempo.
Cacos de telhas pelo chão, restos de cadeiras e móveis e que ninguém sabe de onde tinham saído, lixo e um monte de porcaria, tudo ali impedindo que Tonico e Tiquinho, e ainda Aninha, que sempre se metia onde não era chamada, fossem até o outro lado. Assim mesmo se jogaram por cima de tudo até chegar ao local, diante da sala e encontrar a porta fechada.
“Se a porta for mesmo essa aqui ela está fechada. E agora?”, Tiquinho falava enquanto empurrava e forçava a tranca. “Bata que pode ter gente aí dentro trancada”, disse Aninha. E Tonico começou a esmurrar a porta com toda força, gritando o quanto podia para ver se ouviam lá dentro.
Certamente que havia gente lá dentro, mas não em condições de responder. Nunca mais abriria a boca pra dizer nada, é verdade. A diretora que só vivia enraivecida e ninguém suportava mais olhar na cara dela estava lá sentada no seu birô, com um rosário numa mão, um copo virado na outra, mortinha da silva. Adiante uma garrafa de rum pelo meio e na cara uma feição esquisita entre o alcoolizado e o amarelado retorcido.
Sorte dos meninos que não veriam essa cena peculiar, tão medonha e ao mesmo tempo hilária, ainda que tenham conseguido entrar na sala. E entraram porque a madeira não suportou os solavancos e acabou cedendo, desmoronando grande parte. Por já conhecerem a sala, sabiam qual o lado que ficava a estante, bem defronte onde estava a diretora morta. Ao menos naquele instante ela não encrencaria com eles.
Tatearam de um lado para outro, derrubaram livros e objetos até encontrar alguns frascos, caixas e envelopes, que logo imaginaram ser dos remédios. Aninha disse que tinha certeza que alguma coisa muito estranha tinha acontecido naquela sala, pois o cheiro de bebida estava forte demais e era como se ela tivesse avistado um vulto em algum lugar dali. Mas Tiquinho disse que não tinham tempo para brincar de detetive e deviam se apressar para levar o remédio da professorinha.
Chegaram com o que encontraram e colocaram tudo nas mãos de Suniá. Ela pediu que procurassem uma caixa de fósforo na sua bolsa e depois se certificou que não havia sequer um comprimido, uma gota de remédio, nada. As caixas, os frascos e as cartelas estavam completamente vazios. Mas teve uma ideia.
Pediu que outros alunos fossem, ainda com mais cuidado, até o murinho dos fundos da escola, numa espécie de quintal, ainda na parte de dentro, e ali procurassem uns matos que cresciam pelos cantos da parede. Os meninos logo lembraram o local. E pediu ainda que eles arrancassem algumas folhas e trouxessem até ela, pois sabia da existência ali do mastruz e da malva, plantas que serviam para qualquer tipo de dor e inflamação.
A primeira a se oferecer para ir foi Aninha, a que queria fazer de tudo. Murilo disse que não e então começou a festa. A menina esperneou, começou a chorar, a esculhambar com o colega e acabou vencendo. E lá se foram ela, Murilo e ainda Tonico que, pelo sentimento de culpa que crescia cada vez mais, se achava no dever de fazer o que fosse preciso para o restabelecimento da saúde da boa amiga.
Novamente tateando, todos molhados e sujos de lama, cataram aquilo que encontraram pela frente, segundo as indicações. Por sorte só havia ali aquelas duas plantinhas medicinais, pois se houvesse alguma venenosa tinha vindo no bolo. Mas pelo cheiro forte das ervas arrancadas logo sentiram que haviam feito o trabalho corretamente.
Bastou que a professorinha passasse as plantas próximo ao nariz e já sentiu que os meninos tinham acertado, tinham encontrado e trazido o que ela tanto precisava para o momento. Até porque sem remédio comum não havia outra saída.
Pediu que providenciassem um copo e em seguida dobrou, machucou bem miudinho as folhas e o caule da malva e do mastruz, e quando tudo estava parecendo uma bola de odor muito forte, que na claridade seria esverdeada e sumarenta, pediu que tirassem um lenço de cabelo que estava em sua bolsa.
Daí colocou tudo no pano, enrolou bem enroladinho e mandou que batessem umas três vezes por cima, mas sem machucar muito para não escorrer todo o sumo. Em seguida abriu o pano, colocou as plantas maceradas dentro do copo e pediu que colocassem água da chuva, mas sem enchê-lo totalmente.
Encerrada essa fase de preparação do remédio, tampou a boca do copo com a mão e balançou muitas vezes. Em seguida colocou o copo no birô e o lenço por cima, deixando assim por uns dez minutos. Disse que era para as forças medicinais tomarem mais consistência, equilibrassem o poder das duas ervas, de modo que ao tomar pudessem surtir efeito.
Enquanto preparava isso tudo, cuidadosamente, com voz fraquinha e o corpo mais ainda, por instantes os meninos deixaram de tanta agonia, de tanto aperreio querendo logo sair dali. Agora a preocupação parecia ser outra, que era com a saúde da professorinha, ainda que muitos alunos não vissem a hora de tudo aquilo passar.
Passados os dez minutos, ela pediu o copo e nesse instante achou até bom que tudo estivesse tão escurecido, pois a cara que ia fazer não seria das mais agradáveis. Já conhecia desses remédios e o amargor que causavam quando tomados feito chá ou até mesmo naquelas condições. Segurou o copo na mão trêmula, fechou os olhos e não pensou duas vezes, entornou todo o líquido. Quase sai um grito, o corpo estremeceu de cima a baixo, os lábios agora pareciam rígidos, insensíveis.
Não demorou nem cinco minutos e não conseguia nem caminhar mais. Sentiu que o primeiro efeito do remédio foi ocasionar um entorpecimento total pelo corpo, uma sonolência insuportável. Não suportando mais ficar em pé, disse aos meninos que deitaria ali num cantinho por cinco minutos até o remédio fazer efeito e ela melhorar. Mas antes pediu por tudo na vida que se comportassem, não brigassem e nem ao menos pensassem em sair da sala.
Adormeceu feito uma pedra, mas coisa muito rápida, passageira, pois a seguir começou a suar, vieram os pesadelos, se contorcer de corpo inteiro. E dizer coisas, falar palavras sem sentido, mas outras que alguns alunos ouviram bem:
“Tristão, por que me trocou pela igreja Tristão?” E repetia diversas vezes: “Tristão, por que me trocou pela igreja Tristão?”.


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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