TEMPESTADE – 16
Rangel Alves da Costa*
O coitado do marido, de vez em quando sentado na beirada da cama, fazia tudo para atender aos pedidos da mulher, mas nesse dia estava tudo mais difícil de dar atenção ao que ela pedia. Estava pertinho quando ela falou que estava com um pressentimento ruim, que talvez não visse mais o filho, mas achou melhor não dizer nada, apenas levantou e se pôs de cabeça baixa no portal. Sabia que ela estava morrendo.
Já havia conversado com o filho sobre o grave estado de saúde da mãe, afirmando que ninguém tomasse de surpresa se a perdesse a qualquer momento. Ela ia morrer debaixo daquela chuvarada toda, não tinha dúvidas, em meio aos relâmpagos, raios, trovões e ventania, como um anúncio sinistro do inevitável. E porque tinha certeza disso queria ter o filho Tiquinho a seu lado, ali acompanhando os últimos momentos da mãe.
Mas estava difícil, muito difícil disso acontecer, a não ser... A não ser nada, pois seria loucura fazer no que de vez em quando pensava. Ademais não podia deixar Mazé sozinha naquele estado de jeito nenhum. Se ela desse um grito e ele não respondesse, iria imediatamente tentar levantar e então seria o fim. Fazer o que meu Deus? Se não agüentar descambo porta afora e vou buscar meu menino de qualquer jeito. Dizia a si mesmo o pai de Tiquinho, chorando baixinho, por dentro e por fora.
Já em situação muito mais confortável viviam os pais de Murilo. Comparativamente aos outros moradores do lugar era uma família até remediada, pois o pai tinha emprego certo na prefeitura e a mãe revendia produtos artesanais confeccionados ali mesmo na região para lojas da capital. Trabalhava com tudo a mulher, renda de bilro, colcha bordada à mão, tricô, crochê, santos e cangaceiros talhados em madeira, cesto de vime, até produtos de barro, tudo enfim.
Mas como diziam sempre, todo ganho que tinham bastava somente para a sobrevivência, para a subsistência um pouco mais confortável. E realmente era uma família muito simples, humilde, acolhedora e de uma bondade infinita. Tanto era assim que todo mês destinavam uma quantia certa para o Lar dos Aflitos, que era uma casa de caridade mantida por Dona Mocinha para prestar todo tipo de assistência aos necessitados.
Mas que assistência prestava? Quase nenhuma, pois era o próprio Lar que mais necessitava de ajuda para se manter ainda de portas abertas. Diziam até que se não fosse aquela entidade por ela mesma criada, Dona Mocinha não tinha nem como sobreviver. De qualquer modo, com o dinheiro que conseguia fazia um sopão para ser distribuído a quem estivesse com fome, pagava uma costureira para remendar roupas que ganhava para serem doadas depois, e uma vez por semana oferecia barbeiro e cabeleireiro gratuitamente.
Bertásia, a mãe de Murilo, fazia questão de estar lá enfurnada no Lar ajudando Dona Mocinha no que precisasse. Na verdade, um dos motivos de ir tanto à casinha de assistência era precisamente para levar uma marmitinha com comida para a fundadora, um remédio para suas dores, uma roupinha nova para ela vestir. Achava tão bonito aquele gesto da boa velha que até tinha vontade de pedir para tomar conta de tudo e deixá-la morando lá mesmo, fazendo aquilo que gostava de fazer com tanto carinho. E ainda recebendo alguma ajuda financeira.
Por prezar pela simplicidade no jeito de ser e viver, os pais do menino Murilo jamais deram ouvidos aos muitos que chegavam para perguntar como era que uma família de posses mantinha o seu filho estudando numa escola pública, com o prédio feio e envelhecido e com qualidade de ensino questionável, além de que, fora a professorinha Suniá, todos os outros que ensinavam ali utilizavam métodos de ensino conservadores e arcaicos.
E os pais sempre respondiam na ponta da língua: “Em questão de educação, não adianta dar o luxo se o filho não se sente bem estudando lá. Vai aprender o que, se não tem interesse, motivação alguma, não se sente bem naquele ambiente? E é exatamente com a professorinha Suniá que ele se sente realizado estudando, demonstrando sempre imenso prazer e até aqui aprendendo muito mais que o luxo poderia ensinar. Ele não se importa com a escola, se é pobre ou rica, feia ou bonita, grande ou pequena, mas apenas com a sua professorinha. Gosta tanto dela que não sabe pra onde ir quando ela não mais ensinar à sua turma. Por isso que a educação dele chama-se praticamente professorinha Suniá...”.
Naqueles instantes tempestuosos estavam juntinhos dentro de casa e davam graças a Deus por a chuvarada toda ter começado um pouco antes de todos saírem para os seus afazeres. Os compromissos daquele dia tiveram que ser adiados até que o sol voltasse a brilhar. E também era momento pra que a mãe ficasse mais um pouco ao lado da filhinha de pouco mais de seis meses, irmã do sapequinha do Murilo.
Logo quando tudo escureceu de vez e a fúria tomou conta de cima a baixo, o pai do menino ainda pensou que daria tempo de pegar o carro e ir até à escola buscar o filho. Chegou a abrir a porta de casa, mas levou uma tufada de vento, acompanhado de um enxame de pingos grossos que teve de recuar. Olhou mais adiante, para as ruas e viu que tudo já estava completamente alagado, com folhagens e galhos já boiando por todos os lugares.
E ficou imaginando como seria possível que o tempo mudasse assim tão repentinamente, passando de um tempo aberto, ainda que tomado por um calor insuportável, para um mundo de água e medo. E muito medo porque todo ao redor já estava irreconhecível, escurecido demais para se enxergar um pouco mais adiante. Estrondos, faíscas cortantes, chispadas de vento pelo ar, um barulho que ninguém podia dizer ao certo de onde vinha.
Fechou a porta imediatamente e decidiu deixar o menino lá mesmo na escola, pois pensava que tudo aquilo não passaria de alguns instantes. Agora estavam mais preocupados, mas não pelo fato de Murilo estar na escola quando o mundo parecia que ia acabar, mas sim porque não sabiam como retirá-lo de lá e nem quando poderiam vê-lo novamente.
“Vamos pensar somente que Murilinho está bem, só isso. Verdade é que se a gente ao menos pudesse telefonar pra escola, se não tivesse faltado energia e se essa tormenta parasse um pouquinho de atormentar tanto a gente ficaria com mais calma, mas tenho certeza que ele está sendo muito bem cuidado pela professorinha que ele tanto ama”, falou a mãe ao esposo, que não se cansava de caminhar de um lado pra outro.
Mas quem não estava nem um pouco preocupada era a mãe de Marilda. No estágio que mais uma vez estava, totalmente embriagada, fumando um cigarro após o outro, espalhando bianas pela sala inteira, com um toca-cassete à pilha ligado na máxima altura e tocando músicas consideradas bregas, tanto fazia que o mundo acabasse ou não.
De repente, a ventania veio ainda mais forte e fez a porta parar no meio da sala, bem em cima da cadeira onde estava o toca-cassete. Com a chuva e o vento forte invadindo tudo, sem poder enxergar quase nada, vez que a lamparina da sala havia sido apagada, restando somente outros candeeiros, ainda assim a mulher fez força para se apoiar no portal e conseguiu sair para o meio do tempo.
De mãos e cabeças erguidas em meio à sanha da tempestade, pedia a Deus para que lavasse sua alma e lhe afastasse daquela vida sofrida.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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