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domingo, 31 de janeiro de 2010

O ESTADO NEGLIGENTE E O POVO DE LUTO

O ESTADO NEGLIGENTE E O POVO DE LUTO

Rangel Alves da Costa*


Naquele final da manhã de segunda-feira, dia 25 de janeiro deste ano, eu estava no meu escritório quando ouvi um estampido alto e seco. Pensei dois segundos, corri até o portão, fui até a esquina e vi a cena dantesca: Eraldo estava estirado no asfalto, com o corpo virado pra cima e a cabeça latejante de sangue. Estava morto, no percurso entre o seu comércio de bebidas e a sua casa, que ficavam quase em frente, e fora assassinado instantes atrás por covardes que se evadiram numa moto e que, para roubar o dinheiro recebido dos vendedores do Pré-caju, praticaram o latrocínio.
A repercussão dessa tragédia certamente que foi acompanhada pela grande maioria da população sergipana, e também da brasileira, vez que as emissoras de televisão locais e nacionais, bem como os jornais e rádios, noticiaram amplamente o fato. A família, na sua dor e incompreensão do que tinha realmente ocorrido, foi prontamente amparada pelos amigos, confortados como foi possível e teve forças para se despedir do seu ente. Contudo, nem a família nem ninguém engole foi a forma como o crime ocorreu, o pedido de ajuda de Eraldo que não foi atendido, a morte anunciada como conseqüência.
Ora, consta que Eraldo, desde cedinho, já havia suspeitado de alguns indivíduos que se encontravam no outro trecho da rua Simão Dias e por isso mesmo telefonou para o 190 para relatar a suspeita e pedir providências. A imprensa mostrou repetidamente a gravação do contato realizado. E é de bom alvitre que se reproduza:
“Comerciante: Bom dia, aqui tem dois motoqueiros parados só de olho. Tem mais de cinco minutos.
Atendente: Eles estão fazendo algo suspeito?
Comerciante: Para mim, estão fazendo algo suspeito. Se é motoqueiro, é suspeito ficar parado há muito tempo. Eles não são moradores da rua. Estão parados há muito tempo e não tiram os capacetes da cabeça. Não tiram o capacete.
Atendente: A placa da moto?
Comerciante: Eu não vejo. Não posso ir até lá ver. Só sei que ele está parado olhando.
Atendente: O senhor visualizou a característica dos indivíduos?
Comerciante: Não. Não conheço. Estão com capacete na cabeça, como é que vou saber?
Atendente: Eu peço que o senhor tenha as características do indivíduo para me passar.
Comerciante: Está certo. Está bom. Tchau.
Sem o retorno do chamado da polícia, ele continuou no local e, no fim da manhã, com tempo de sobra, os criminosos colocaram em prática o que planejavam. O comerciante foi assassinado com um tiro na cabeça quando saía do depósito” (Portal G1).
O que dizer, então, disso tudo: a suspeita, o medo, o pedido de ajuda, a ajuda que não veio e o assassinato? Pelo que sabe, até o presente momento, apenas a atendente do telefonema dado por Eraldo pagou o pato. Como é do conhecimento de todos, a corda sempre arrebenta do lado mais fraco. No aparato da segurança pública do Estado ninguém vê ou aponta, dentro da corporação, alguém que possa ter negligenciado nessa falta de atendimento aos rogos do comerciante.
O problema é que dentro da própria segurança pública, logicamente que antevendo repercussões ainda maiores, ao invés de assumir possíveis erros existentes, simplesmente deliberaram por trocar acusações ou fazer suposições dentre eles mesmos. Para uns, a culpa pelo negligenciamento foi única e exclusiva da funcionária terceirizada que fazia o atendimento no CIOSP; para outros, teria que ter profissionais capacitados para fazer o acompanhamento e checagem de todas as informações que são repassadas ao CIOSP, fato que não ocorreu naquele dia; uns afirmam que os atendentes precisam ser melhor treinados; e ainda outros dizem que o ocorrido foi apenas um infortúnio.
Afinal de contas, é preciso que o Estado, através de seus responsáveis, venha a público e assuma que houve um grande e grave erro, aliás, gravíssimo erro e com proporções que afetaram toda uma sociedade que vê na segurança pública uma política essencial de governo. Ademais, não somente erro, mas também a prática dos crimes de negligência e omissão, dentre outros, além da transgressão de preceito básico da Constituição da República, no tocante à segurança pública enquanto direito e garantia fundamental de todo cidadão brasileiro, seja ele pobre ou rico, grande empresário ou pequeno comerciante.
Com efeito, diz o art. 144 da Carta Magna que a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Portanto, a prestação da segurança ao cidadão não é nenhum favor governamental, não é nenhuma política que se deixe de exercer ou não, pelo contrário, é uma ordem constitucional para que o Estado garanta, ou tente garantir, a paz e a incolumidade das pessoas.
Aliás, a segurança pública, enquanto previsão constitucional, deve estar nas ruas, reprimindo as ameaças e as tentativas, combatendo a insegurança, prevenindo contra a violência generalizada. Devendo estar presente a qualquer hora e em todo lugar, mais necessária ainda se torna quando a situação de violência é iminente, como a que vitimou Eraldo. Porém, não estava e não chegou. Só foi para relatar o ocorrido e transportar o corpo.
Dessa previsão constitucional é que o Estado jamais poderá ser negligente ou omisso. Ora, negligência é a falta de cuidado ou de aplicação numa determinada situação, tarefa ou ocorrência; é a omissão, descuido ou desleixo no cumprimento de encargo ou obrigação. De modo específico, é o que o Estado fez quando não deu a mínima atenção para os rogos de Eraldo.
Com relação à omissão, tem-se que o Estado foi omisso ao deixar produzir um resultado quando poderia e deveria evitá-lo. No direito penal, omissão ocorre quando o omitente (o Estado, no caso) devia e podia agir para evitar o resultado e não o fez. É a abstenção de um ato ou de cumprir um dever legal; é a não-realização da conduta exigida por lei, sem a qual o resultado não teria ocorrido, gerando a responsabilidade criminal por ter sido a causa de um delito.
Diz ainda o Código Penal que “A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado” (Art. 13, § 2º). Daí concluir-se que o Estado foi omisso e de natureza relevante, pois tinha a obrigação de dar proteção, tinha a responsabilidade de impedir o resultado e criou o risco da ocorrência do resultado.
Assim, por ter infrigido a norma constitucional e agido com negligência e omissão, além de outros crimes que mereceriam maior aprofundamento, o Estado deverá, sim, responder pela sua irresponsabilidade. E isto é também previsão constitucional. É que a Constituição consagrou a responsabilidade objetiva do Estado em seu artigo 37, parágrafo 6º: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
Quer dizer, o Estado, ao assumir a responsabilidade sobre determinada atividade deve arcar com o risco que essa atividade enseja e, assim, assumir a culpa se algum dano for causado aos particulares em decorrência da mesma. E isto está devidamente comprovado nas nossas mentes e nas tristes recordações do ocorrido.
Que o Estado inseguro não continue vitimando pessoas inocentes, pois as famílias não têm nenhuma culpa pelas promessas não cumpridas dos governantes.



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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