SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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sábado, 9 de janeiro de 2010

SOBRE TEMPO, TARDES E FOTOGRAFIAS

SOBRE TEMPO, TARDES E FOTOGRAFIAS

Rangel Alves da Costa*


Sempre há um fim de tarde no dia e na vida da gente. É ao cair da tarde que brota a filosofia, ressurgem mais fortemente as lembranças e recordações, bate a saudade no peito e dá uma vontade danada de pedir licença ao tempo para retroceder um pouco e nos permitir destruir, refazer ou construir melhor.
Ledo engano quem espera do tempo essa chance. Silenciosamente ele avança sem pedir licença ao destino e se impõe todas as vezes que nos olhamos no espelho. Implacável é esse tempo que não quer ouvir nossos rogos e orações e marca com ferro o que somos hoje. “Se um dia eu pudesse ter meu passado inteiro...”, diz a letra da música. Porém, ledo engano. Se eu quisesse voltar dois minutos e reiniciar esse texto não teria chance; tenho que recomeçar sempre do momento presente.
Por ser assim, irretratável e decidido, é que o tempo é culpado por muito sofrimento que se alastra pelos finais de tarde e avança noite adentro. O que não foi bem feito ontem, a briga impensada que terminou um namoro, o que teria de ser dito e não foi, os cuidados não tomados, as negligências que causaram graves consequências, a decisão errada, os muitos erros praticados, tudo isso chega de mansinho à mente, começa a torturar o pensamento e, por não poder voltar através e fazer a coisa certa, agir corretamente, é que recai o sofrimento, amargura o peito e imediatamente reflete nos olhos: a primeira lágrima no final da tarde. E serão muitas, a depender do conteúdo do baú da memória. Tudo culpa do tempo, que no máximo nos permite imaginar o que passou. E isso para aumentar o sofrimento.
Existem, particularmente, certas situações, fatos, pessoas e coisas que ficam adormecidas durante grande parte do dia para surgirem como ventania e temporal nos finais da tarde. Os entes queridos que partiram desta vida, a infância e adolescência onde tudo era permitido, a vida feliz em outro lugar, a jovem meiga e de olhar triste que fazia alegrar o coração, as muitas perguntas feitas e as respostas que jamais vieram, nem nesses finais de tarde.
Se chove lá fora e o tempo entristece mais ainda, parece abrir uma porta onde não nos reconhecemos mais no presente. Tudo é passado. Não basta tomar uma taça de vinho, dobrar a dose de uísque sem gelo, mesmo assim o gosto que se tem pela boca é o acre sabor da lágrima. Os olhos e o vidro da janela turvam pela enxurrada interna e externa. Onde está você agora? Como está você agora? Bem que poderíamos rever tudo, mas é tarde.
Por mais que os desgastados álbuns sejam rebuscados no fundo da gaveta, por mais que a caixa de cartas e lembranças escritas sejam retirados do armário, o que realmente martiriza as pessoas nesses finais de tarde de chuva, vinho, recordações e lágrimas, são as pessoas e os momentos acumulados ao longo do tempo no coração. As chaves desse baú de histórias tristes, momentos de alegrias e alicerces inacabados aparecem sempre nos finais das tardes, e abrem os cadeados do coração quando a chuva começa a cair. Seria melhor um cálice de vinho ou um uísque duplo? Tanto faz, desde que o lenço esteja por perto.
Se amanhecemos e decidimos que naquela tarde não haverá lugar para recordações e tristezas é sinal de que começamos a aprender com o passado e a aceitá-lo sem maiores sofrimentos. Hoje amanheci com essa intenção, idealizando o dia voltado somente para o presente. Não haveria de ser algo que modificasse muito a minha rotina.
Ao levantar, uma das minhas primeiras atitudes foi colocar o CD de Enya. Poderia ser Celtic Woman, pois a beleza musical e as vozes nos erguendo ao espaço são deliciosamente iguais. Ouvi Now We Are Free, depois Amarantine, e quando comecei a ouvir Only Time já estava, sem querer, olhando fixamente para uma fotografia emoldurada na parede. A imagem em preto e branco já estava parecendo velha, perdendo a cor, tornando-se amarelada e tirando o brilho do rosto daquele menino que parecia estar alegre. Esse menino era eu. O outro eu é que já estava triste.
Não precisei recorrer ao espelho nas proximidades para ter a certeza das marcas do tempo. Não sei bem quantos anos tenho, mas comparando a fotografia com a feição do presente fica a certeza de que o pintor do destino, na restauração constante de sua obra, foi acrescentando traços que me tornaram triste. Pelos olhos, um olhar de distância infinita; na boca, a metáfora de um sorriso que não existe mais; pelos cabelos, como se a neve estivesse presente na aridez escaldante.
Eu era feliz e não sabia. A fotografia de ontem diz tudo; o que sou agora não me deixa mentir. Mas não sou infeliz, pelo contrário. Ser triste não significa ser infeliz. O problema é que a felicidade construída ao longo do dia é pausada quando vem a tarde, quando começa a chover, quando chegam as lembranças e recordações. É o pensamento da felicidade de ontem que me deixa um pouco mais triste hoje.
Mas ainda é cedo. A fotografia fica na parede e eu sigo na vida, sendo fotografado pelo tempo e com a certeza de que as imagens retornarão mais tarde, qualquer dia desses, sempre ao entardecer.

Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com

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