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segunda-feira, 24 de junho de 2013

FORRÓ DO MILTINHO (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Por mais incrível que possa parecer, mas no sertão não é nada fácil encontrar o autêntico forró pé-de-serra e o bicho preá. Este porque a derrubada da mataria e a queimada do mato rasteiro determinaram seu desaparecimento. E aquele pelos modismos musicais impostos em tempos de arrocha, axé, baianada e o tal do forró elétrico.
As festas oficiais patrocinadas pelas prefeituras, como as da padroeira e da emancipação política, são todas elas com bandas e grupos musicais que em nada refletem o verdadeiro espírito sertanejo. São festas apenas para os jovens e um desrespeito total aos sertanejos de mais idade.
Desrespeito não só aos mais velhos, como também à própria história, à cultura e às tradições sertanejas. Ao não oferecer patrocínio para um forró autêntico, um forrozeiro de renome, de modo que o sertanejo reencontre suas raízes e possa dançar como fazia antigamente, o administrador atual está desrespeitando o próprio sertão.
Como já afirmei noutros textos, os jovens têm todo direito de brincar, de requebrar, de se esbaldar com suas músicas insignificantes e sempre pautadas em modismos extravagantes. Mas o sertanejo também deve ter garantido seu direito de saborear suas raízes forrozeiras. No entanto, é impedido de reencontrar sua musicalidade por culpa de quem só prestigia o gosto da juventude.
Poço Redondo, município sergipano no alto sertão do estado, desde muito que sofre as consequências dessa opção musical levada adiante pelos administradores. Lugar famoso pelas festas de agosto, onde os salões se enchiam para ouvir e dançar forró pé-de-serra ao som da sanfona de Zé Aleixo, Dudu, Zé Goiti, Agenor da Barra, Didi, Raimundinho e tantos outros, de repente viu os salões se fecharem e a sanfona, o zabumba, o triângulo e pandeiro silenciarem de vez.
Desde muito que um sanfoneiro bom, renomado, não é contratado para abrilhantar uma festa, sequer junina. Também não há mais forrós pelos salões, daqueles começando cedo e varando a madrugada. Há sim, mas de iniciativa privada, e voltados para um público cativo e apaixonado pela sua autêntica musicalidade.
 
E este público é aquele mais antigo e que não abre mão de arrastar a chinela ou o sapato encourado pela sala de reboco. É no arear a fivela, no esfregar bucho com bucho, no chinelar pelo salão que a vida sertaneja encontra contentamento perante as dificuldades da vida.
Foi nesse contexto de desvalorização cultural, de antimusicalidade e de desprestígio das raízes nordestinas pelos administradores, que algumas pessoas começaram a tomar a iniciativa de não deixar a voz da sanfona calar de vez. Pessoas abnegadas e também forrozeiras como Missião e Miltinho chamaram para si a responsabilidade de manter acesa a tradição do forró pé-de-serra, contratando sanfoneiros e oferecendo festanças matutas.
Mas foi Miltinho quem mais procurou manter acessa essa chama. Ele, um sertanejo humilde, ex-tratorista, de uma bondade sem igual, passou a transformar o grande espaço do seu bar à beira da pista asfáltica, num verdadeiro salão forrozeiro.
Os seus forrós ficaram tão famosos e com público tão assíduo que o salão de três portas ficava completamente lotado, sem espaço para  mais ninguém, ainda que nos dias que rivalizava com as bandas famosas logo adiante, na Praça de Eventos.
Salão e bar, forró e cantoria, arrasta-pé e nostalgia, tudo isso fazendo a alegria de senhores e senhoras que nem se incomodavam com os suores, as bebedeiras, o cheiro de cachaça, os tantos chamados para dar uma voltinha pelo salão. Também gente armada, afeita a uma confusão, mas tudo regido por Miltinho, que do outro lado do balcão logo dizia que não admitia bagunça no seu forró. E tudo ficava paz.
E assim a noite varava com a sanfona gemendo e os corpos suados querendo mais. E nessa junção de forró, arrasta-pé e talagada, a noite avançava sem ninguém se dar conta. Muitas vezes, já madrugada clareando e o salão ainda estremecendo com os forrozeiros afoitos que nem bichos na mataria. E ao amanhecer, já sem o som da sanfona, mas pessoas pelo balcão e pelos cantos.
Contudo, infelizmente nosso Miltinho faleceu bem às vésperas desse São João. No dia 21, quando talvez já estivesse com todo o forró programado, teve um ataque fulminante e calou, como faz uma sanfona depois de tanto alegrar os sertanejos. Como o instrumento nordestino em despedida, deu seu último acorde e partiu. Assim que eu soube da triste notícia, assim me manifestei numa rede social:
“Hoje à tarde tomei conhecimento da partida do nosso amigo Miltinho, aquele mesmo do Bar do Miltinho, em Poço Redondo. Desde muito que o conheço e por quem guardava profunda amizade e consideração. No seu jeito simples e amigueiro de ser, acabou se transformando num baluarte ao preservar a tradição forrozeira em Poço Redondo. Enquanto a juventude se requebrava com as bandas e grupos musicais na Praça de Eventos, os mais velhos acorriam ao seu bar para dançar até o amanhecer com o mais autêntico forró pé-de-serra. Quando não organizava a dança matuta, alugava o ambiente para a mesma finalidade, mas sempre por ali, tomando umas e recebendo os bons amigos. Coisa do destino que tivesse acontecido assim. Às vezes do São João, época maior do forró, e aquele seu guardião nos deixa inesperadamente. Que Deus o acolha no grande homem que sempre foi. Que Deus zele e console toda família. A morte, Miltinho, é também um forró de despedida, um canto de dor no coração de quem fica”.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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