Rangel Alves da Costa*
Uma linha sutil separa a noite da madrugada. Mais precisamente o ponteiro do relógio ao marcar zero hora. Do por do sol à meia-noite será apenas noite; da meia-noite até surgir a primeira alva da manhã será madrugada.
Contudo, não é errôneo afirmar que a madrugada está dentro da noite ou faz parte desta. Muitos chegam a afirmar ser a noite o período compreendido entre o cair das sombras da noite até o amanhecer. Ou o tempo em que a claridade do sol está ausente no horizonte.
Desse modo, a madrugada seria a noite avançada, lá pelas tantas horas, geralmente quando as pessoas já estão adormecidas. As horas vão passando e na escuridão o que é noite vai se preparando para o amanhecer.
As noites e as madrugadas dependem muito do lugar onde ocorram. No sertão, por exemplo, principalmente nas moradias distantes dos centros urbanos, a noite sempre começa mais cedo e a madrugada desperta antes mesmo de o galo cantar.
Em muitos lugares, onde os casebres estão envoltos no silêncio e na solidão, basta o sol começar a se esconder que a família já toma seu café para, dali a instantes, fechar a porta para o recolhimento noturno. No cansaço das lides, são poucos os que se demoram mais apreciando a beleza e a imensidão do luar.
Quando a noite cai totalmente já estão recolhidos, proseando pelos cantos ou ouvindo uma canção dolente no radinho de pilha. Adormecem com os barulhos próprios da noite, com os encantos e as magias do mundo lá fora, com a reinação de alguns bichos noturnos e o zunido incessante da ventania.
O casal desperta ainda na madrugada. Os amores velados quase se misturam com a hora de acordar. O galo nem cantou ainda e já é hora de levantar, da primeira prece, de abrir a porta e lançar o olhar ao mundo lá fora. Ainda é madrugada escurecida, mas logo uma luz amarelada começará a despontar lá na barra.
Quando o galo canta o café já está por cima do fogão de lenha e o pedaço de toucinho chamuscando para ser juntado à farofa. Parte da comida vai pro alforje, como alimento sertanejo para mais um dia de trabalho duro e distante. Um gole de café, uma olhada na filharada ainda adormecida, e a estrada. Ainda é madrugada, mas já é dia na vida do campesino.
Na cidade tudo é diferente. Em muitos lugares, dia, noite e madrugada se juntam num só percurso. Tem gente que trabalha noite adentro, tem gente que vive na noite e da noite, tem gente que encontra a madrugada, e também a manhã, na mesa de bar, nos cabarés, nas esquinas da vida.
Para muitos, a noite chega como encanto, como impulso e devotamento, para depois, com o correr das horas, ir se transformando em pesadelo, angústia, aflição e tristeza. Quando a madrugada chega e o corpo cansado de sexo transmuda o fingimento sentando à mesa e sorvendo a bebida, não demorará muito para que a realidade recaia num laivo de dor e sofrimento.
E o alvorecer encontra os últimos noctívagos, os bêbados e as prostitutas, semicerrando os olhos com medo da luz. Como é cruel a manhã para quem faz da noite o fingimento e a negação da própria existência. Talvez a bebida os faça apagar de vez e reencontrar o negrume iluminado de ilusões.
Mas a noite é também de outros fingimentos, outras cortinas para o pior que virá. Depois da escuridão a doença retoma seu lastro, reaparece com sua feição mais sinistra. O que é febril se torna fogueira, o que é uma dor se transforma em flechadas. E os gritos irrompem na escuridão, as janelas se abrem, a tristeza adentra. E a madrugada já é tudo desvão.
Quem dera se a noite trouxesse apenas os mistérios e os encantos da escuridão. Quem dera se a madrugada revelasse apenas os segredos adulterinos, as entregas amorosas, os cochichos dos apaixonados corações. E dos amores tantos, das entregas e procuras tantas, surgissem as estrelas próprias de cada prazer.
Mas nunca é assim. As noites continuarão sendo indecifráveis, como desconhecidas são as madrugadas. E quem cruzar seus caminhos certamente encontrará muito mais que uma lua na rua nua.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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