SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 9 de agosto de 2013

COITEIRO


Rangel Alves da Costa*


Nem no coiteiro, aquele que era recebido com atenção, o Capitão Lampião pôde confiar, alguém escreveu um dia. Prova maior que o até o mais destemido fraqueja, acaso tenha acontecido mesmo a propalada traição.
Mas ninguém pode negar a valentia, coragem e fidelidade da maioria desses homens de garranchos, estradas e espinhos. Homens fiéis e destemidos. Ninguém pode negar o valor que o coiteiro possui na história nordestina. Os livros se fazem de esquecidos, mas toda a saga cangaceira perpassa pelo coiteiro.
Pra quem não sabe digo logo o que é coiteiro. Mas espere aí, pois antes disso quero dizer uma coisa: certa feita um preferiu morrer sob tortura, pinicado e sangrado pela violência da volante, a dizer onde o bando de Lampião estava amoitado. Mostrou fidelidade e preferiu morrer a fazer o jogo da volante.
Outra vez, um correu no meio da noite, se lascando todo por cima de pedra e ponta de pau, vencendo morros e armadilhas sertanejas, só para avisar ao Capitão sobre um boato repentinamente surgido. A volante estava naquela redondeza e se dirigindo para as bandas do coito. Aviso providencial que permitia virar as alpercatas de frente pra trás e seguir adiante, ou mesmo preparar-se para o embate. Mais um.
Coito, coiteiro. Coiteiro e coito. Duas palavras num só destino. Coiteiro cria do coito; coito o grande segredo do coiteiro. Um não vivia sem o outro. Do coito saía o coiteiro para cumprir ordens, para os perigosos afazeres; para o coito voltava o coiteiro com o espelho do mundo lá fora. Coito e coiteiro representavam o repouso e a movimentação cangaceira.
Agora sim. Chegou o momento de dizer o que é coiteiro, o que fez na vida, a quem serviu, como e onde agiu, como tantas vezes foi acusado de traição. E também como ficou registrado na história com o extermínio da saga cangaceira, principalmente a lampiônica.
Coiteiro era o sertanejo que, mesmo não fazendo parte do bando cangaceiro propriamente dito, compartilhava do seu mundo e de sua existência. Exteriorizava os desejos e as ordens cangaceiras. Servia de elo entre a vida na caatinga e os seus arredores, incluindo pessoas e povoações. Sem o coiteiro, o cangaço não compartilhava do mundo exterior e ficava totalmente vulnerável aos ataques.
Coiteiro era o matuto chamado a colaborar com o cangaço. Nunca forçado, mas sempre disposto a cooperar. Era, a um só tempo, mensageiro, transportador de mantimentos, confidente, conhecedor e guardião de segredos de vida e de morte. Boca sempre fechada e ouvido sempre aberto, talvez fosse o seu lema. Mas nem todos, segundo dizem, cuidaram de seguir os ditames.
Coiteiro era aquele que, conhecedor de cada linha e cada canto da região catingueira, auxiliava nas estratégias de proteção cangaceira. Era o olho pelo arredor, era o cão farejando o inimigo. Logo dizia sobre a segurança do local escolhido para repouso ou alertava acerca dos perigos que estavam correndo.
Coiteiro era o bom amigo do bando que levava a carne fresca de bode, a linha e agulha para costura, o remédio e a porção, as armas e a munição, o dinheiro e outros objetos enviados ao bando; aquele que se esforçava ao máximo, e correndo todos os perigos, para que nada faltasse naquela estadia dos cangaceiros. E eram bem recompensados pelas providências tomadas. De vez em quando um anel dourado era colocado no dedo.
Coiteiro era aquele que servia o abrigo cangaceiro, o local de descanso e repouso, a moradia temporária do bando, o coito. Desse modo, tem-se então que coito era o local onde a cangaceirada se amoitava vindo de longe viagem e desejosa de algumas horas ou dias de descaso.
Assim, coito era o lugar escolhido pelo líder do bando para o merecido descanso, até que a necessidade fizesse levantar acampamento e seguir adiante. Tantas vezes numa correria no meio da noite ou a qualquer hora do dia que o vento inimigo soprasse pelos arredores.
Por fim, tem-se que coito era a ponto de parada entre a mataria de trás e a mataria da frente. Escolhido cuidadosamente por possibilitar ligeireza na fuga, por está em local desconhecido e de difícil acesso, ou ainda porque em região onde se podia contar com amigos de confiança.
A Gruta do Angico, nas beiradas do Velho Chico, em Poço Redondo, foi o mais famoso dos coitos. Ali Lampião pensava estar protegido, mas se enganou. As serras ao lado, os descampados da beira do rio e as próprias águas como veredas, facilitavam o ataque inimigo. E o ataque mortal veio singrando as águas.
Naquele coito, situado nas terras da família de um coiteiro famoso, um rapazote chamado Pedro de Cândido, a saga cangaceira declinou de vez. O ano era 38, madrugada sertaneja de 28 de julho, e a volante de João Bezerra fuzilou Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros. A saga cangaceira terminava ali, ainda que Corisco continuasse nas caatingas até 40.  
Dizem que o coiteiro Pedro de Cândido traiu Lampião. Mas nem precisava ser assim. O próprio Capitão, alquebrado e cansado da vida catingueira difícil, parecia não mais atentar para os perigos que o rondava. Do contrário, não ficaria assim tão exposto ao fogo inimigo. E de modo tão previsível.
A culpa não pode recair, pois, apenas no coiteiro, ainda que o mesmo, bêbado e torturado, tivesse apontado o exato local onde estavam Lampião e seu bando. Dizem até que o próprio comandante da volante, o Tenente João Bezerra, na gruta já havia comparecido para um carteado com o amigo rei do cangaço.
Como dizia Alcino Alves Costa, são mentiras e mistérios de Angico. Mas em todo o percurso cangaceiro a importância do coiteiro. A história sempre prefere cuidar daquele Calabar sertanejo, do suposto traidor. Mas todos os outros deveriam ser lembrados como importantes personagens nessa trama de sol e sangue.
Conheci um desses velhos coiteiros pelas ruas de minha Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo. Homem calmo, de poucas palavras, mas amigueiro se conhecesse a procedência do interlocutor. Assim era Mané Félix, em cujos olhos tantas vezes eu consegui enxergar o outro lado da história: um recorte da vida cangaceira sem emenda nem ponto.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com   

Um comentário:

Anônimo disse...

Caro Rangel:
De maneira alguma coloco o Coiteiro Pedro de Cândido na posição de traidor. Acredito que um traidor forçado pelas circunstâncias não é traidor. Alguém que o delatou (se é que foi assim), é que pode levar o nome de traidor.
Gravei uma entrevista com um cidadão de Serra Talhada que conheceu a família de Virgolino, e ele me informava que os castigos que impuseram a Pedro de Cândido, não havia outra saída a não ser conduzir a Força Policial ao coito de Angico. Creio que qualquer um faria o mesmo.
Bom descanso nestes dois dias na sua querida Poço Redondo, junto com demais filhos e netos do saudoso Escritor ALCINO ALVES COSTA.
Antonio José de Oliveira - Serrinha-Ba.