Rangel Alves da
Costa*
Os fatos
acontecem e posteriormente são interpretados e reinterpretados, produzindo
conhecimento acerca do fenômeno ocorrido. Tal processo implica,
necessariamente, na tomada de posições que se voltam para preservar a maior
proximidade possível da realidade ou do fato ou mesmo disseminá-lo sem qualquer
compromisso com a verdade. E isto, nas duas vertentes, aconteceu com o cangaço.
O que se
tem hoje é uma diversidade de feições sobre o mesmo fenômeno, mas disseminadas
em vias paralelas: uma que se oficializa como interpretação do cangaço, através
dos estudos realizados, e outra através do senso comum, da concepção própria de
cada um, das posições tomadas e que são alardeadas boca a boca. A primeira
busca se aproximar da verdade histórica; a segunda produz uma verdade segundo a
conveniência pessoal.
Com
relação ao cangaço, o senso comum, ou seja, aquele conhecimento que o ser
humano vai adquirindo, por experiência cotidiana, ao longo dos anos, acaba se
transformando num imaginário coletivo onde estão refletidas as concepções
populares acerca do cangaceirismo. Desse modo, é a imaginação popular que passa
a valorizar ou desvalorizar o fenômeno, a concebê-lo da forma que pressuponha ter
acontecido ou mesmo buscar na inventividade um modo de dignificar ou de
macular.
De
qualquer sorte, a noção que um estudioso ou pesquisador possui do cangaço
geralmente se diferencia muito da visão que uma pessoa comum possui sobre a
mesma saga sertaneja. A pessoa desprovida de análise mais aprofundada tenderá a
imaginar o cangaço como um todo dentro da mataria, sem se preocupar com suas
causas, motivações e percursos. Já o pesquisador procura compreender as partes
desse todo.
O
sertanejo comum, muito menos que um movimento de revolta, de contestação armada
ou de banditismo social, ou mesmo como grupo organizado de sublevação à lei e à
ordem social, proporá uma concepção que vai desde o mítico ao modo simplista de
se fazer justiça pelas próprias mãos. E, diferentemente da concepção acadêmica,
passa a mostrar uma clara tendência a sacralizá-lo ou excomungá-lo.
Longe de
explicações academicistas, de refinamentos conceituais ou de arcabouços
teóricos, a visão tida pela maioria das pessoas é a mais realista possível,
ainda que possa não corresponder à verdade. Fruindo puro do que ouviu ou do que
aprendeu, não há muito lugar para refinadas interpretações no conhecimento
vulgar. A maioria das pessoas se contenta em ouvir e falar sobre o cangaço a
ler sobre as versões existentes ou mesmo conhecer mais profundamente seus
meandros.
Muitas
vezes traz da nordestinidade, da elevação do seu herói conterrâneo, uma defesa
já pronta, já na ponta da língua. Do mesmo modo que santifica a figura do Padre
Cícero, a maioria dos sertanejos - estes priorizando o imaginário - poderá fazê-lo
com relação a Lampião. Não é de se admirar que alguns coloquem o rei dos cangaceiros
no mesmo patamar do Padre do Juazeiro, de Antônio Conselheiro e Frei Damião.
Daí que aquela cruz fincada na boca da Gruta do Angico possui uma extrema
significação para o nordestino.
E não
haverá acadêmico ou pesquisador que possa fazer o sertanejo pensar de outro
modo. Jamais aceitará que digam que Lampião não passou de um bandido feroz, um
assassino cruel nem que o bando se prestou apenas a levar a morte, o medo e o
terror por todo lugar aonde chegasse. E na ponta da língua do caboclo estará
que aquele povo das caatingas teve coragem de enfrentar os poderosos e combater
as injustiças sociais. E ainda que naquele tempo havia homem verdadeiramente
valente para enfrentar o que de pior existia.
Neste
último aspecto, o que se tem é a visão cimentada do cangaço como algo justo,
necessário e que ainda hoje seria de muita serventia para combater as
injustiças que se alastram. Eis o imaginário nascido da idealização do cangaço
como fenômeno justificado pela injustiça se alastrando em todos os quadrantes
sertanejos, fazendo preponderar aquela saga como uma luta em busca de justiça
na carcomida sociedade nordestina de então. E que continua.
Para a
maioria dos sertanejos, falar em cangaço é dizer da valentia e do destemor
daqueles bravos errantes das caatingas, é dizer das estratégias matutas para
fugir do encalço da volante perseguidora, é asseverar do romantismo daquela
vida debaixo da lua e do sol, é pensar aquele modo de vida como uma grande
aventura. Aquelas roupas, aqueles adornos, o ouro brilhando desde o chapéu à
ponta dos dedos, tudo tão belo e atraente. Assim, não se volta para as vinditas
sangrentas em si, mas sempre para os aspectos e aparatos grandiosos que
envolviam os cangaceiros no seu percurso.
As
explicações oferecidas através do senso comum não são consideradas pelos
estudiosos por diversos fatores. Afirmam os pesquisadores que as pessoas tendem
a misturar noções pessoais a um fenômeno muito mais abrangente; que procuram
enxergar apenas o fato e desprezam todo um cenário que estava por trás e movia
o cangaço; que geralmente se posicionam para opinar sobre o heroísmo ou o reles
banditismo de Lampião.
Com
efeito, o imaginário comum sobre o cangaço não é muito diferenciado, nos tempos
atuais, das concepções controversas travadas em torno da religião, do futebol, de
partidos políticos e candidatos, bem como dos acontecimentos cotidianos. Cada
um fala com cátedra, defende sua posição e até acirra a discussão se o outro
for frontalmente contra seu posicionamento ou sua bandeira.
Nesse
entremeio de paixões e abominações, eis que surge o cangaço como a luta maior
de um povo sofrido ou como um bando de baderneiros e violentos que aterrorizava
o pacífico sertão. Contudo, insista-se em dizer, são concepções sempre nascidas
de uma tendência pessoal, de relatos ouvidos e acreditados, de suposições que
foram se firmando como verdades. Daí que pouco frutificará o trabalho daquele
que pretenda ensinar ao sertanejo outro modo de pensar o cangaço.
Como
ocorre com toda paixão popular, não só de defensores vive o cangaço. Mesmo que
a maioria dos nordestinos se orgulhe dos feitos de Lampião e seu bando, há
aqueles que ainda hoje fazem o sinal da cruz só de ouvir qualquer referência. E
quando maldizem sua existência vão buscar no ferro em brasa de Zé Baiano, no
mito das criancinhas jogadas para o alto e esperadas na ponta do punhal, no
assassinato covarde de sertanejos inocentes, dentre outras versões cangaceiras,
a sua feição mais negativa.
Mas
nenhuma forma de desonra parece ter o poder de se sobressair ao culto quase
sacralizado que a maioria dos sertanejos ainda conserva com relação ao cangaço.
Pouco importa se Lampião foi herói ou bandido, se o seu bando foi responsável
pela morte de inocentes ou se o medo se alastrou pelos sertões durante o seu
reinado. Nada disso importa quando a consciência popular já firmou o
entendimento de que o cangaço, e principalmente Lampião, é o próprio Nordeste
na sua bravura maior, na sua luta incessante contra todas as injustiças.
Herói ou
bandido? Depende de quem esteja do outro lado. Não é um fraco e sem motivos que
sua e sangra aquela luta; mas também não é virtuoso quem tanto, além do
inimigo, faz sangrar na luta. E não apenas o sangue escorrendo do ser, mas
também a vermelhidão do pavor.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Rangel amigo: O meu bom-dia.
Não é querer fazer uso do PUXA-SAQUISMO, elogios, aplausos etc. etc., que você mesmo sabe que não precisa disso. Mas quero lhe dizer que esta matéria: O CANGAÇO DE BOCA EM BOCA, é valiosíssima para a elaboração do meu trabalho, e, com a sua permissão posso transformá-la num esquema para uma boa palestra em escolas ou em quaisquer Instituições. Ótimo artigo caro Doutor Rangel!
Antonio José de Oliveira - Serrinha-Ba.
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