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sábado, 17 de agosto de 2013

CORONEL TITÓ E A REVOLTA CAMPONESA


Rangel Alves da Costa*


Boanerges Titó é o que se poderia chamar de velho coronel linha dura, de imutáveis decisões, cuja palavra deveria ser tida como sentença de último grau. Por isso era tão temido por seus desafetos e principalmente pelos que a ele viviam submissos. E eram muitos, não desafetos, pois já havia mandado tocaiar e derrubar a maioria, mas dependentes, subordinados. Quase escravizados.
Dono de grandes latifúndios na região do Mundaréu, o Coronel Titó, como gostava de ser nomeado, chamava para si todo o poder regional, tanto político como econômico. Mais de trinta famílias encontravam moradia e trabalho em cada uma das três imensas propriedades, fora as dezenas de camponeses que se sustentavam prestando serviço nas terras do grande senhor. Assim, era um mundo de gente sob o comando do sempre desgastado terno branco de linho.
Do suntuoso casarão numa das propriedades, comandava a vida daquelas pobres famílias e dos tantos trabalhadores assalariados dele dependentes para sobreviver. Todos padecendo da miserabilidade desde pequenos, agora adultos tinham de submeter às esmolas vis oferecidas pelo coronel. Sim, porque eram assalariados sem receber salários. Auferiam apenas aquilo que o homem do terno branco bem entendesse.
Ademais, todas as famílias que moravam nos barracos espalhados pelas propriedades estavam obrigadas a comprar ali mesmo o que necessitassem. Para tal, em cada fazenda havia um armazém farto de suprimento, de carestia e de cadernos para ir anotando as dívidas impagáveis dos míseros trabalhadores. E também era ordem do coronel que cada trabalhador não residente no lugar, mas que lhe prestasse serviço, estava obrigado a deixar no armazém metade do recebido.
Mas tudo de carestia desenfreada. Um pedaço de carne seca custava o olho da cara, uma barra de sabão valia uma preciosidade, uma garrafa de pinga levava quase todo o salário. O problema é que sentiam alguma coisa diferente nas contas que só aumentavam, ainda que todo mês um dos jagunços passasse fazendo a cobrança, e sobre nada podiam reclamar. Dois trabalhadores que reclamaram e disseram que não suportavam mais viver daquele jeito, não demorou muito e foram encontrados formigando dentro da mataria. Os urubus espalharam o aviso aos demais.
A coisa começou a mudar quando os assalariados resolveram não mais deixar metade do recebido no armazém. No mesmo dia, mais de vinte homens, moradores ali mesmo de uma das fazendas, invadiram o armazém e rasgaram todos os cadernos com contas velhas e novas. O vendedor gritou pelos jagunços, mas quando três deles correram naquela direção com armas em punho, foram recebidos com canos apontados de todos os lados. Só saíram vivos da refrega porque correram com a incumbência de dar um recado ao coronel: Ninguém era escravo pra viver debaixo de bota de salafrário. Dali em diante exigiam respeito.
Ao ouvir o recado, o Coronel Titó deu um salto da cadeira de balanço que assustou a capangagem. Vermelho como um tomate, botando fogo pelas ventas, se esforçava pra esbravejar e não conseguia. O fôlego só voltou depois que virou de uma golada só um copo de cachaça. A primeira coisa que disse foi que todos os jagunços se reunissem, dali e de outras propriedades, para mostrar àqueles safados quem era que mandava ali.
Mas no instante ouviu um barulho que lhe chamou atenção. Mandou ver o que era e o cabra voltou dizendo que o casarão estava completamente rodeado pelos moradores das propriedades, trabalhadores e até gente desconhecida. Espantado, o coronel não quis acreditar no que ouviu. Caminhou até a janela e lançou o olhar raivoso adiante. E avistou uma multidão gesticulando, erguendo enxadas e facões, fazendo menção de marchar até a entrada do casarão.
Velho matreiro, achando que contornaria facilmente aquela inesperada revolta, perguntou de quantos jagunços dispunha naquele momento. Ordenou que todos os seus violentos escudeiros fossem chamados até ali, e imediatamente se pôs a pensar no melhor a fazer naquele momento. E decidiu que iria sair para conversar com a corja, mentindo o quanto pudesse até que a capangagem cercasse todo mundo pelas costas e acabasse na bala aquela afronta. E deu ordens nesse sentido.
Assim que desceu a escadaria e acenou pedindo calma aos revoltosos, no mesmo instante teve de se proteger atrás de uma pilastra para ouvir palavras que jamais imaginou pudessem a ele ser dirigidas. Queriam respeito, o fim da escravidão, o pagamento justo pelo trabalho, o fechamento daquele armazém desumano, o fim daquelas dívidas inexistentes, reforma nas moradias e aumento do salário dos outros trabalhadores.
Encurralado, sem ter saída alguma naquele momento, só lhe restava que a capangagem logo chegasse para acabar com aquela pouca vergonha. No momento, até o problema ser resolvido na bala, achou conveniente gritar para a multidão e dizer que aceitava fazer tudo aquilo que eles pediam. Ainda detrás da pilastra, esperou ouvir qualquer resposta, que não veio. Mas ouviu de uma voz conhecida que os homens já estavam ali. Sentiu um alívio danado. E saiu do esconderijo para assistir a correria dos trabalhadores.
Enganou-se, contudo. A capangagem estava ali sim, mas desarmada e no meio do povo. O Coronel Titó não pôde acreditar no que via. Havia sido traído. Era o seu fim, pensou enquanto se mijava nas calças. Procurou a arma na cintura, mas nem conseguiu sacá-la. Alguém jogou um tomate maduro bem no meio do seu peito. Ao sentir o baque e ver o vermelho por cima do linho branco, achou que havia sido acertado. Alguém havia atirado. E ia morrer.
Desabou no chão feito uma jaca mole. Não morreu desse desmaio, acordou na estrada e tendo ao lado uma mala com os seus ternos. Arrumou forças para correr, prometendo a si mesmo que ia arregimentar autoridades, governantes e políticos na defesa de seus direitos. Era um absurdo um coronel dono do mundo ser despejado da própria terra. Mas enquanto andava de gabinete, desacreditado e sem apoio, o povo ia cuidando da terra. E assim continuou, semeando a subsistência com dignidade.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com    

Um comentário:

Anônimo disse...

Caro Professor Rangel: As minhas saudações.
Como sempre, seus artigos e crônicas são de excelente qualidade. Contudo, o meu comentário desta feita não tem nada a ver com a matéria.
Eis o comentário: Acredito que a sensibilidade das autoridades governamentais e dos amigos do saudoso Escritor Alcino Alves Costa, fará que o livro TODO O SERTÃO NUM SÓ CORAÇÃO seja lançado no próximo CARIRI CANGAÇO. Não vejo como um povo tão unido como é o nosso povo Nordestino, deixar passar tão excelente oportunidade. O Alcino, que foi um pesquisador profundamente interessado nos fatos das Terras Sertanejas merece uma homenagem deste quilate, proporcionada pelos seus companheiros de mesmos ideais.
Confiado em todo esse povo para quem o apelo foi dirigido, espero ler o referido livro logo mais após o CARIRI CANGAÇO do próximo mês.
Muito grato,
Antonio José de Oliveira - Povoado Bela Vista - Serrinha-Ba. e-mail: antonioj.oliveira@yahoo.com.br