Rangel Alves da
Costa*
Quiró,
mais conhecido como Quiró mesmo. Não havia outro jeito, pois todo mundo o
chamava assim. Mas seu nome de batismo era Crimério Clementino dos Santos. Nome
grande demais para um homem de pouca coisa, dizia ele. Então se sentia feliz
quando era chamado pelo apelido tão conhecido.
Não tive o
prazer de conhecer o sertanejo Quiró, pois nascido e vivido num tempo já
distante do meu percurso. Sua história sei por que ainda hoje os seus feitos
são cantados em verso e prosa pelos quadrantes das terras caboclas. E como
sempre ando com embornal para guardar coisas interessantes, foi juntando tudo
que ouvi sobre esse cabra sem igual.
Viveu no
tempo dos meus avôs, porém seus causos ouvi de outros senhores debaixo dos
sombreados dos arvoredos de fim de tarde. Pelo que soube e guardei na algibeira
- pois também tenho uma de couro cru -, o cabra Quiró foi o mais autêntico
sertanejo que já existiu por aquelas bandas do Mundaréu.
Foi - em
fases diversas da vida e também muita coisa ao mesmo tempo - um exímio
vaqueiro, aboiador dos melhores, caçador renomado, rastreador de bicho afoito,
cantador de versos tristes em noites de lua cheia. E muito mais, pois uns dizem
que também foi coiteiro de Lampião e já outros asseveram que chegou a pegar em
arma no famoso fogo da Cantirana.
Também
dançador de forró sem igual na região. Quando se banhava no ribeirão e
derramava por cima um frasco inteirinho de lavanda era sinal que logo mais
estaria arrastando o roló carcomido pelos salões de arrasta-pé. Virava um copo
de pinga, umburana da legítima, passava a mão pelos beiços e também pelos
cabelos para ver se ainda estava assentado na brilhantina, e depois percorria o
salão em busca de afoiteza.
Dançava de
ficar completamente empapado de suor. Mas nunca passava das três da madrugada,
pois mais tarde, logo ao alvorecer, já tinha de estar preparado pra lide. Cabra
trabalhador igual a ele não existia em lugar nenhum. Dizem que quando não
estava com empreitada certa, logo arrumava o que fazer. Saía pelos quintais
ajeitando os cercados de um e outro, limpava na enxada a mataria, perguntava ao
compadre se estava precisando de alguma coisa.
Trabalhador
sem igual, mas também vivendo numa pobreza sem igual. Quase ninguém compreendia
porque assim acontecia, vez que sempre solteiro, morando sozinho, sem ter mais
de uma boca pra alimentar, e o homem nunca juntava dinheiro pra comprar sequer
uma calça inteira. Vivia remendado, muitas vezes faminto. Contudo, umas poucas
pessoas sabiam muito bem os motivos daquela pobreza toda.
Filho
único, um dia prometeu à sua moribunda mãe no leito de morte que jamais
descansaria em paz sem ter juntado tudo aquilo que até aquele momento a ela não
tinha oferecido. Assim que a velha morreu - logo naquela noite -, daí em diante
quase todo o dinheiro recebido pelo trabalho era levado pra debaixo do chão.
Isso mesmo, pois cavou um buraco bem fundo nos escondidos da mataria e lá
enriquecia uma botija para compartilhar com sua mãe assim que a reencontrasse.
Por conta
disso, duas ou três pessoas que sabiam dessa história achavam que Quiró já não
estava bom do juízo. Na verdade verdadeira, são de verdade ele não podia ser de
jeito nenhum. Muitas vezes, debaixo do sol e do calorão, e ele era encontrado
conversando com pedra. Mas outros dizem que o seu miolo ficou meio mole depois
que tomou uma surra no meio do mato.
Um dia foi
caçar e esqueceu de levar o naco de fumo pra deixar pros encantados bem em cima
da pedra lisa. Dizem que tomou uma surra da caipora que ficou todo moído. Sobre
a surra ele não negava a ninguém, e acrescentava que aquela foi a única vez na
vida que havia chorado de raiva. E enraivecimento porque tomava lapada de todo
lado e não conseguia ver a cara da covardia que lhe açoitava.
Desajuizado
ou não, fato é que era reconhecido por muitos outros feitos. Montava num
cavalo, vencia ponta de pau e galhagem espinhenta, se lanhava todo, mas
derrubava o boi valente; ia buscar no fundo do baú os aboios mais antigos e
após soprar o berrante fazia até pai de chiqueiro chorar; em noites de clarão
enluarado tomava da viola de pinho e chamava para si o pé de ipê e a tristeza
do jeca. Até a lua descia mais um tiquinho para ouvir aquele canto dolente.
Gostaria
de ter vivido o seu tempo. Como gostaria de saber o que conversava tanto com
seus botões e por que a cobertura do seu velho oratório era um chapéu de couro.
E por que aquele retrato sem rosto entre os santos. E também aquela flor de
mandacaru ao lado da vela acesa. Ah, Quiró, como eu gostaria de saber.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
2 comentários:
Amigo Rangel: Saudações com as suas criativas crônicas.
Pergunto: Já pensou se você existisse nos velhos tempos de QUIRÓ?
Já pensou você ouvindo e acumulando na mente as coisas da trajetória de QUIRÓ cara-a-cara?
Hoje, você não pode nem mesmo procurar a existência de um neto ou bisneto do QUIRÓ, se na história contada por você, ele morreu solteiro. Que pena, alguém possuidor de tantos atributos não deixar descendência para contar a sua história!
Um bom fim de semana com as suas cronicas.
Antonio José de Oliveira - Serrinha-Ba.
Pois é meu caro escritor Rangel: Eu, por ser leigo em matéria de crônica, logo que sempre escrevi artigos e não crônicas, acreditei em seu QUIRÓ VERDADEIRO. Por ser uma estória tão bem contada, nem pensei sê-la uma ficção. Que DEUS continue dando-lhe essa mente privilegiada. Tudo indica que é a junção da herança do velho pai, e o exercício do dia-a-dia que lhe deixa de mente tão aberta. Abraços,
Antonio José de Oliveira
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