Rangel Alves da
Costa*
Não sou
mais o que era antes. O tempo quis assim. O calendário foi passando, mudando o
retrato em mim. O tempo cega a imagem, a idade cuida do fim.
Carrego
outra moldura, madeira envelhecida ornando o que fui um dia. No espelho
embaçado, aquilo que se chamava alegria. No percurso da estrada, a curva da
nostalgia.
Um velho
baú na memória, restos empoeirados entrelaçados na história, todo o percurso de
uma vida, desde o tropeço à vitória. Que um dia venha o troféu, que um dia
chegue a glória!
Talvez na
parede ainda caiba mais um sorriso amarelado, tomado de teias de aranhas, de
brilho no olhar embaçado. Eis vida que foi vivida num caminho inacabado. Nó
desfeito de um dia e novamente enlaçado.
O menino
de chupeta e felicidade, um sorriso sem maldade, um viver com sinceridade. Mais
tarde continuaria assim, o mesmo homem menino em outra realidade. Agora muito
mais dura, agora sem piedade.
Cabelo no
brilho da brilhantina, a calça curta da infância que desatina, a inocência e o
que a ela se destina. Viver e viver, brincar e brincar, nessa idade a maior
sina. Ah, felicidade de um dia, saudade que ninguém imagina!
Eis que
chega o dia de o olho mirar adiante. Tudo passa, nada é constante. O calendário
esvoaça num rompante, tudo se apressa e nada mais se mostra o bastante. Ao
invés do prazer, a dor lancinante.
A moldura
do retrato vai perdendo sua cor. A infância já não é doce sabor, pois o menino
em adulto se tornou. E o que não passou foi o vento que levou. Ventania e
vendaval, no varal da história o resto de mim que ficou.
Por trás
da moldura, além do espelhado, agora o jovem que ali é retratado. Não tem mais
o mesmo sorriso, se mostra um tanto ensimesmado. Olhando o futuro, talvez de
nada admirado. O medo, a dúvida, um viver agoniado.
Na parede
ainda nova o retrato se sobressai a tudo. A força da idade, e nela o grande
escudo. Tempo de pensar diferente, ter caminho de espinho ao veludo, no grito a
ser dado sempre o mais agudo.
A moldura
envernizada parece de feição infinita. Também a fotografia, com outra
aparência, mas bonita. O amanhã ninguém sabe, se beleza singela ou beleza
esquisita. Mas não há feição singela em vida que seja aflita.
O retrato
parece estar pincelado com cores de menor pujança. A boca de agora esconde o
sorriso da criança, o rosto irradiante ganhou mais temperança, o olhar feliz
mira somente a lembrança. Agora só a saudade daqueles idos de criança.
Por muito
tempo o retrato teve seu lugar apropriado. No cantinho ou na parede, sempre o
maior cuidado. Eis que o vento chegou tão malcriado que balançou o retrato e
quase o deixou revirado. Assim também é o viver, barco pelo mar açoitado.
Tempo,
tempo, o calendário voraz, traz vento e ventania, sempre quer mais. Sempre quer
mais, nunca se satisfaz, e vai transformando tudo em marca profunda e sagaz. O
que se imaginou infinito um sopro logo desfaz.
E o brilho
da moldura, antes exuberante e envernizada, foi perdendo o viço no passo da
longa estrada. E o moço que estava ali, feliz com sua jornada, viu o arco-íris
da idade ser recoberto a pincelada.
Pintor
esse mais ingrato, pois foi tirando a cor da existência e mudando a cor do
retrato. Trouxe o pincel do outono e a tristeza de fato. Foi destruindo a
moldura, da vida fez artefato, do homem fez substrato.
Certamente
um dia, com porta aberta e a ventania, a parede caia depois de tanta agonia. E
no vão de tudo que esvai, talvez o retrato renasça do pó que por cima cai. E na
memória, do pó para a história levantai.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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