SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

NÃO ADMITO EM VOCÊ (Crônica)

NÃO ADMITO EM VOCÊ

Rangel Alves da Costa*


Você pode até achar que está tudo certo, correto, normal. Não posso dizer que está errada, completamente errada em agir como age, fazer o que faz, dizer o que diz. Você age segundo o senso de coerência, por isso que não devo recriminar. Contudo, porque as tenho como inconvenientes, algumas coisas não posso aceitar.
Não posso admitir, por exemplo, que pinte a paisagem e sua vida e esqueça uma planta; que desenhe a noite e nem lembre da lua minguante; que risque uma estrada e esqueça uma curva. Você não pode ver tudo somente ao seu modo. Às vezes tudo é tão claro que você não poderia deixar de perceber.
Não admito que passe por quem conhece e não cumprimente, não murmure sequer um bom dia ou boa noite; que abra a janela ao amanhecer e não olhe a natureza adiante e não esboce um sorriso de felicidade; que não conheça nem o leiteiro nem o jornaleiro que jamais esquecem você. Você não é tudo na vida e tudo sozinha.
Não adianta, não posso aceitar que passe três dias sem molhar as plantas, dar água e comida aos passarinhos, limpar as folhas ressequidas que tristemente se avolumam pelo jardim, deixar que destruam o único banco da pracinha sem fazer nada. Você mandou cortar as árvores frutíferas do quintal, derrubar o ninho da andorinha, arrancar o último pé de hortelã. Você precisa saber do seu poder e dos seus limites.
Não posso acreditar no que soube que você fez. As crianças querendo sonhar, viajar, viajar, sorrir, brincar e você jogou no lixo livros com histórias infantis, jogou no mato o trenzinho que Zezé gostava de ver passar no “Meu Pé de Laranja Lima”, deixou queimar os bolinhos de chuva de Tia Nastácia, rasgou a velha fotografia da parede de “Éramos Seis”. Quem reconhecerá agora a família reunida, o menino que chora porque cortaram sua árvore amiga, a boa amiga que vive fazendo docinhos e guloseimas. Você não tinha esse direito. Você não pode querer destruir as outras vidas e deixar a sua como único exemplo.
Não creio que tenha capacidade para tanto, mas me disseram que você, em nome de viver uma vida totalmente voltada para o presente e o futuro, rasgou todas as cartas guardadas naquele velho bauzinho de família; queimou toda a história familiar gravada nas velhas fotografias que pareciam sorrir nas paredes; quebrou o retrato com moldura e tudo do casamento dos seus pais e o de sua mãe recebendo o diploma de corte e costura; catou todos os objetos que faziam lembrar do passado, colocou tudo numa caixa e entregou ao rapaz do caminhão do lixo. Você pode fazer o quiser, mas saiba que não tem o direito de fazer do passado algo que se destrói num segundo, como faz com muitas coisas de sua vida.
Não vejo como atitude certa e aceitável que abomine e jamais queira ao menos experimentar ficar molhada pelas chuvas de março, dormir ao acaso à sombra espraiada do jacarandá no horto distante, ficar totalmente tomada pelas folhas que são trazidas pelo vento no entardecer do outono, não sentir vontade de ir lá enxugar as lágrimas do mar quando está chovendo.
Não compreendo porque não sobe na montanha, não senta no monte, não dialoga com a pedra e nem aceita que a brisa se achegue e acaricie o seu rosto. Você não pode ser assim, pois não tem o direito de não reconhecer o valor das pequenas coisas que nos fortalecem e nos fazem compreender a importância da vida.
Não posso aceitar sua inimizade com os anjos, com os santos, com a igreja, com a religião, com a sua própria fé. Só não diz que anda afastada de Deus e do seu filho porque impossível de ser ao menos essa família, vez que sua família biológica se tornou um estorvo, um mal a lhe perseguir por dizer que está errada quando realmente erra.
O que seria de ti afastada desses pilares que lhe dão sustentação? Talvez você nunca mais tenha orado, feito uma prece com devoção. Mas assim que acender a vela e contritamente falar com o Senhor lembrará muito mais de si mesma e verá que ainda continua tão frágil quanto a lágrima que talvez derrame.
Depois dessa prece, dessa oração, talvez eu possa aceitar alguma que insista em fazer, pois consciente das consequencias dos erros e dos acertos.




Poeta e cronista
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