SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 1 de outubro de 2009

EU, SERTANEJO, COM ORGULHO DA GENTE E NÃO DO POVO

EU, SERTANEJO, COM ORGULHO DA GENTE E NÃO DO POVO

Rangel Alves da Costa*


Inicialmente, antes que haja deturpação nas palavras e pretendam crucificar o autor antes de ler o texto e entender o seu sentido, informo que os vocábulos gente e povo, mesmo que mantenham semelhanças de significado, são totalmente diferentes quanto aos destinatários aos quais são empregados, ou seja, possuem analogia mas cuidam de contextos diferentes.
Com efeito, gente é um conjunto de pessoas que possuem características comuns; é um grupamento humano natural de algum lugar; é ainda família, pessoas com afinidades. Por sua vez, povo é o conjunto de habitantes de uma localidade ou região; é o conjunto de pessoas que vivem em sociedade ou formam uma comunidade; é uma massa humana de uma forma geral. Os dois termos diferenciam-se, pois, pelo fato de que povo pode ser visto como um todo do qual gente faz parte; aquele localizando-se de forma abrangente e este situando-se de modo específico. Assim, povo sertanejo não é o mesmo que gente do sertão. O povo é de qualquer lugar e que lá está; a gente é de lá, com raízes fincadas no lugar.
Esclarecidos tais aspectos, verdade é que ser sertanejo dá um orgulho danado. Nascer naquelas paisagens áridas, desafiadoras, instigantes, e que somente seus filhos sabem usufruir, faz brotar e crescer no homem/terra um imenso sentimento de dignidade pessoal, de brio, altivez e amor-próprio. Como diz a letra da música caipira, “de que me adianta viver na cidade se a felicidade não me acompanhar, adeus paulistinha do meu coração, lá pro meu sertão eu quero voltar...”.
Quem está longe quer voltar porque sabe que enfeiam-se as construções da cidade grande diante da beleza singela das moradias simples, rústicas, dispostas ali e acolá pelas vastidões dos campos e descampados; não há um jardim sequer em outro lugar, por mais cuidados que receba, que se compare com os terrenos tomados por mandacarus, xique-xiques, palmas, cabeças-de-frade. Os cactos também dão flores. Não há na cidade grande qualquer coisa que se assemelhe, nem de longe, com aquele cotidiano de lutas e esperanças por dias melhores. Os olhos curtidos pelo sol enxergam e vêem que tudo é possível. E ainda há as manhãs sertanejas, o entardecer do gado berrando, o outro dia que chega ainda na escuridão e logo se alimenta com o leite quentinho do peito da vaca.
Razão tinha Fernando Pessoa, o poeta português que também amava sua terra: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia. Parafraseando, toda a beleza que possa existir além do sertão jamais será mais majestosa do que tudo que na aldeia sertaneja nasceu. E essa aldeia impregnada de aridez cativante é mais bela por uma razão muito simples: o sertanejo é tão misturado à terra, que não é pessoa, é chão do sertão. Sendo homem/terra, vê plantado em si a responsabilidade de afastar do lugar os desatinos do destino, buscando preservar de toda ameaça que há.
Se ter orgulho, amar a terra, é também procurar preservar, que se comece logo separando o joio do trigo. Assim, quando afirmo que tenho orgulho da gente e não do povo sertanejo, nada mais quero dizer do que a afeição com que vejo os meus conterrâneos não é a mesma que sinto com relação ao forasteiro que ali se instala como uma erva daninha em meio aos frutos da paz e da ordem que buscam florescer. É como se fosse a parábola bíblica do joio e do trigo nas distâncias nordestinas.
Aos poucos, o joio sorrateiramente começou a chegar e fez moradia por entre o trigal, e como não se pode, no início da gestação, arrancar o joio sem danificar o trigo, o sertanejo teve que forçadamente acolher o estranho, mesmo sabendo que a partir dali nada mais seria como antes. Atualmente, joio e trigo estão espalhados no sertão indistintamente, como se fossem uma coisa só. Conseqüência disso é que a gente da terra, o trigo que não pode

mais ser dono do seu próprio destino, paga o preço de todos os tipos de aberrações praticadas pelo joio forasteiro. Para quem não vive o contexto, não conhece as novas situações criadas, o sertanejo se tornou, antes de tudo, também um malfeitor.
Como ter orgulho do estranho que chega, vai engolindo as cidades, espalhando-se desordenadamente pelos arredores, formando grupos de escusos interesses comuns, andando impunemente armado, semeando violência e confusões, tirando a paz do pacato interiorano, tornando o sertão tão negativamente maculado como jamais se viu na história? Não significa afirmar que há santidade, infinita bondade na gente do lugar, pois tem muito caipira que não é flor que se cheire, mas não se pode negar o óbvio: hoje, é preciso refazer, continuar vivendo o ontem para continuar admirando o sertão.
Não quero magoar ninguém, por isso mesmo vou culpar o progresso e o desenvolvimento por tudo que vem ocorrendo. Ademais, segundo afirmam, todos têm direito a um lugar debaixo do sol. Com o progresso, os lugares tornam-se descaracterizados, perdem a feição bravamente construída; com o desenvolvimento, infelizmente vão perdendo sua história. Se mais tarde ainda haverá lugar para a verdadeira gente sertaneja só Deus saberá responder. O povo vai continuar existindo, e talvez destruindo com maior ferocidade.
Mas hoje, insistindo em defender meu berço de flores e cactos, guio-me ainda por Fernando Pessoa e continuo a dizer: “Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo... Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer, porque eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura...”.



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com

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