SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 13 de outubro de 2009

LEMBRANÇAS, APENAS...

LEMBRANÇAS, APENAS...

Rangel Alves da Costa*


As tecnologias interferindo e modificando nossas vidas, a globalização abraçando e comprimindo a todos indistintamente, as incansáveis pesquisas e os vírus que afrontam as ciências, sobre tudo isso sei. Aprendi a saber porque hoje o conhecimento chega através até do silêncio.
Hoje também sou forçado a saber que o homem ainda não nasceu completamente, que no ventre da criação divina ficaram fragmentos imprescindíveis para que vivesse em sua completitude. Basta olhar adiante e ver o indivíduo que passa e nem percebe a criança suja e esfarrapada deitada sob a marquise; pessoas que se cruzam como se as ruas fossem lugares de inimigos, de eternos desconhecidos, de correrias atropelando o outro e para chegar a lugar algum. Hoje querem me forçar a ver a dor e não sofrer, a ver a injustiça e calar, a ter em demasia e não doar.
Mas ontem choveu por aqui. Parecia que já estava acostumado em viver somente o momento e procurar alicerçar o amanhã, a não ter o coração aberto para as muitas e muitas saudades, mas ontem choveu por aqui. O dia já prenunciava uma tarde encoberta de nuvens, numa expressão melancólica de que mais tarde algo viria atormentar a sensibilidade dos que ainda guardam muitos baús no coração. E quando a tarde foi caindo e a noite chegando, a chuva que começou a desabar foi abrindo, um a um, cada cadeado da memória. E quantas lembranças foram surgindo...
Sim, estava próximo da chuva e até podia sentir os seus respingos. Gosto de ficar à janela e sentir esse lacrimejar da natureza mais próximo. Pela semi-escuridão podia enxergar muito pouco adiante, mas podia sentir que o barulho da chuva caindo era como se fosse um chamado: venha ser feliz com o ontem, com todo o passado...
E lá estava eu no sertão, em noites de lua cheia, brincando de “pega-de-boi”. O boi era escolhido entre um dos meninos, que partia noite adentro para esconder-se; algum tempo depois os “vaqueiros” saíam à sua procura, correndo pelo meio dos matos. Mais tarde, muitas mães tinham que tirar espinhos daqueles pequenos e atrevidos pés. Estes mesmos pés chutavam muitas bolas feitas de meias, recheadas de retalhos de panos e costuradas. Os campos eram os descampados sertanejos, onde a criançada reunia-se nos fins da tarde para jogar bola e fazer gols na trave marcada por duas pedras. Dali a meninada corria em direção ao riacho para o mergulho e o banho na água salobra e suja. Com o dia já querendo escurecer, alguns daqueles amigos ainda iam verificar quantos passarinhos haviam caído nas arapucas armadas nas árvores da beirada do riacho.
Êta vidinha besta, meu Deus!, diria Manuel Bandeira. Mas no sertão, o cotidiano da molecada era assim mesmo, besta e deliciosa, descompromissada com a realidade que mais tarde viria, voltada somente para aproveitar o leite quentinho derramado diretamente do peito da vaca no amanhecer encantador; para ir a escolinha e aprender a amar mais a professorinha do que as próprias lições; para largar o caderno em casa e ir correndo com outros amigos procurar araçás, pitombas e outras frutas da época. Naquele tempo, o sertão tinha árvores frutíferas de todos os tipos e em todos os lugares; não era como hoje, com a terra desmatada e sem as frutas e os bichos; nem passarinho tem mais. Umbuzeiros e cajueiros nem se fala, espalhavam-se por todos os lugares e logo cedinho era possível colher baldes e mais baldes de frutas caídas no chão.
Quando era tempo das trovoadas, o sertão transformava-se num misto de encantamento e pavor. Relâmpagos e trovões tomavam conta do céu sertanejo e anunciavam que a chuva cairia forte. Não sei por que, mas os mais velhos tinham medo dos relâmpagos e trovões. Quando ribombavam e faiscavam, o que mais se via eram mulheres orando, colocando cobertores em cima de tudo que tivesse vidro, mandando os meninos deitarem e ficarem em silêncio profundo. Lá fora, a chuva caía com força nas ruas abandonadas e cheias de córregos que iam desaguar no riacho. Mas passado o medo inicial, as portas eram abertas, o vapor da água entrava nas salas e varandas, pessoas começavam a sair das casas de guarda-chuva e a criançada, totalmente nua, corria alegre pelas ruas, num banho que se tornava inesquecível mesmo a cada vez que se tomava.
Preferia essa vidinha besta, meu Deus, do que estar agora, nesse cimento de concreto e medo, tentando ser feliz apenas com as lembranças do passado. Mas é pior, dói muito mais lembrar da felicidade, das travessuras da meninice e não poder abrir a porta e sair para tomar banho de chuva. Com a chuva que cai lá fora, a única coisa que banha-se sem se molhar são os meus olhos. E eles haverão de ter razão.


Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com

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