Os olhos de Anete continuam tristes
Rangel Alves da Costa*
O cartaz da Campanha da Fraternidade de 1998, com o tema “Fraternidade e Educação: A Serviço da Vida e da Esperança” mostrava uma menininha de feições alouradas, bonita, mas de olhos tristes, profundos e vazios de esperanças, numa fotografia de Sebastião Salgado. O nome dessa menininha é Anete, à época com dez anos, moradora do Assentamento Barra da Onça, no município de Poço Redondo, sertão sergipano.
Em março de 98, comentando sobre a fotografia contida no cartaz, Dom Ervin Kräutler, Bispo de Xingu/PA, teceu as seguintes observações: "Com seu rosto e cabelos desordenados, esta menina representa milhões e milhões de crianças-jovens, do Oiapoque ao Chuí, de Fernando de Noronha a Tabatinga. Pode ser da roça ou das periferias das cidades. Sua posição, suas mãos segurando o lápis, seu olhar e sua boca nos dizem: 'Olhe, estou aqui! Quero aprender! Quero ver! Quero ter vida digna! É por isso que me esforço, faço até sacrifícios! Mas eu preciso de vocês! Quero que me ajudem!'. Seus olhos, tão expressivos, abrem-se para um futuro que se deseja melhor: justo, fraterno, solidário. São olhos ávidos de amor e compreensão. Seu brilho traduz e expressa uma grande esperança: a de que um dia todas as lágrimas serão enxugadas e, finalmente, haverá de surgir um mundo novo, sonhado e querido por Deus", segundo consta na Revista Sem Fronteiras, nº 258, pág. 16, de março de 1998 (disponível na internet em http://users.peacelink.it/zumbi/news/sem/258/sf258p16.html).
Hoje, com vinte e um anos, mãe de filhos, Anete talvez veja nos olhos de sua prole o mesmo olhar triste e amargurado que tinha e continua tendo. Esta mesma retina melancólica e infeliz a enxergar o mundo certamente está presente na maioria das pequeninas e inocentes feições sertanejas, pois são filhos também de um sistema econômico, político e social que não privilegia a valorização do ser humano como forma de redenção de tantos e tão conhecidos males que afligem os sertanejos desde o nascimento. Daí uma vastidão sertaneja marcada por crianças de olhares tristes, muitas vezes de barriga vazia, doentes, sem a escola e a merenda como única refeição, enfim, excluídas e sem grandes esperanças no amanhã.
Como tornar, então, esses inocentes olhares mais vivazes, esperançosos e alegres? Se no país os preceitos constitucionais fossem verdadeiramente aplicados e as políticas públicas e os direitos sociais fossem garantidos e efetivamente procurassem atender aos seus destinatários (que é o povo carente, o mais necessitado povo), certamente que a resposta estaria na própria Constituição da República: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Quer dizer, à criança, seja nascida nas distâncias do semi-árido ou não, deve ser valorizada como ser humano na sua plenitude, com especial respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento e ao reconhecimento da sua vulnerabilidade. Cabe, pois, principalmente aos poderes públicos, atuar através de políticas específicas para promoção e defesa dos seus direitos.
Haverão de dizer, porém, que no sertão as dificuldades são muitas e de toda ordem e que, portanto, priorizar uma parte é deixar na miserabilidade o todo. Entretanto, esquecem que se ali a miséria é latejante é porque foi construída e continuada com interesses políticos escusos, assistencialistas e clientelistas, onde doar uma cesta básica de alimentos é firmar compromisso de voto; não querem dizer que se o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é degradante, não havendo desenvolvimento econômico e qualidade de vida oferecida à população (baixas taxas de alfabetização e escolarização e baixos índices de renda e expectativa de vida) é porque os governantes não aplicam com correção e seriedade as verbas públicas que são destinadas para priorizar o atendimento dos serviços básicos à comunidade; esquecem ainda que construir obras e proporcionar trabalho e ganho de renda aos desempregados não significa destruir o que foi feito na gestão passada ou, após consertar um muro ou pintar uma parede, afirmar que aquele é o governo da construção.
Como conseqüência dessa série de práticas que infelizmente ainda assolam o sertão, o pai de família que já é pobre, excluído, vítima das intempéries da natureza, se vê numa situação calamitosa: desempregado, sem o amparo dos poderes públicos, submetido às perseguições políticas, vendo a esperança esmorecer, e o que é pior, as panelas quase sempre vazias e os filhos com o mesmo olhar de Anete, profundamente tristes. Assim, as crianças, nessa tragédia sertaneja, sempre estão perto da cena final.
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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