SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 1 de outubro de 2009

A história triste de um sertanejo triste, muito triste

A história triste de um sertanejo triste, muito triste

Rangel Alves da Costa*


“O sertanejo é antes de tudo um forte”, na constatação euclidiana. Ele sobrevive, pois, por ser uma raça forte, suportador das agruras da natureza e das incúrias do homem; acolhedor da chuva e do sol com a mesma feição de esperança; revelador, ao mesmo tempo, de um espírito pacato e de um gênio titânico ao primeiro sinal de desfeita; fazedor da hora, sem esperar acontecer, como diria o poeta revolucionário. Nunca se sabe o dia de amanhã no sertão.
Contudo, mesmo sendo um forte, o sertanejo é acima de tudo também um homem triste, marcado por uma personalidade aflitiva, melancólica, de ressentimento. Tristeza no olhar, ao mirar o horizonte e reconhecer a estiagem que será duradoura e inclemente; tristeza na pele ressequida de sol, traços e rugas de setenta numa pessoa de cinqüenta anos; tristeza no andar, no vestir, no falar: o que lhe dará alegria?; tristeza no imaginar, pensar, sonhar: como andará e quando voltará o filho mais novo que foi arriscar a vida no sul?
Há ainda a tristeza do homem/terra, do homem/chão do sertão. Neste sentido, é um ser sofrido, revoltado, oprimido pela estrutura agrária. Continuamente vive incorporando em si os traços melancólicos da paisagem árida: o majestoso isolamento dos umbuzeiros; a aparente fragilidade das catingueiras; a desolada nudez espinhenta dos cactos; a irritação da urtiga e da cansanção; a solidão petrificada da cabeça-de-frade; a desconformidade de toda a vegetação; a ardência da terra; enfim, todo um sentido trágico da vida sertaneja. E há de se perguntar onde estará a lágrima, e há que se responder que o sol secou, sumiu, na há lugar para pranto.
Pois bem. Foi nesse sertão conceito de natureza revoltosa que um dia viveu um sertanejo triste, muito triste. Chamava-se João (talvez José). Quando morreu tinha pra mais dos oitenta anos, era magro e de feições desfiguradas pelo tempo e pelo queimor do sol. Morava sozinho numa pequena tapera distante duas léguas da cidade, num estreito pedaço de terra de um conhecido seu. Situação muito diferente de um passado recente, quando possuía muitos bens e terras, e possuía muitas, pois até onde os olhos podiam enxergar era dele. No fim da vida, entretanto, só restavam cacarecos pendurados na parede de taipa, um calango que cismou em lhe fazer companhia e uma aposentadoria de “doistões” que nem recebia mais. A pessoa da cidade que ia receber o dinheiro não lhe repassava mais nada, a não ser um pouco de alimento pra não morrer de fome. O que não faltava, o que tinha em abundância, era revolta, saudade, tristeza. E tinha motivos para isso.
Sua portentosa propriedade beirava o rio e seguia sertão acima até as proximidades da sede do município. Fazia divisas, contudo, com dois grandes latifúndios de pessoas fortes e influentes na política estadual, ficando assim no meio dos “ninhos de cobras”, como costumava chamar. Suas terras, como sempre ocorre na região, começaram a ser vistas como empecilhos para os planos de expansão dos proprietários vizinhos. Primeiro se ofereceram para comprar, e como relutou em não vender aquilo que lhe dava orgulho, foi ameaçado, tocaiado e sofreu três disparos que não lhe acertaram. Mas acertaram o filho mais velho dos dois que possuía, morto quando cavalgava retornando para sua casa. Não passaram dois meses e a sua mulher faleceu de abatimento e aflição. Roubaram seu rebanho e incendiaram o curral. Não tinha mais jeito, não podia fazer nada; ou saía dali ou ele e seu único filho qualquer dia não amanheceriam vivos. E tomou a decisão de vender suas terras, a qualquer um que lhe pagasse o preço justo, menos aos vizinhos que estavam destruindo sua vida, disso tinha certeza.
Um dia, numa de suas idas à cidade, ouviu falar que pessoas daquela e de outras regiões estavam se organizando para invadir as propriedades de quem tinha muitas terras, mas que nem plantavam nem deixavam os outros plantar. Invadindo as terras improdutivas forçavam o governo a desapropriar, indenizar os proprietários e cada família garantia para si um pedaço de chão para viver e produzir, garantindo a subsistência. Ao menos era essa a intenção. Nos dias seguintes observou movimentos estranhos nas redondezas e não durou muito para ficar sabendo que as fazendas vizinhas tinham sido invadidas. Na manhã seguinte, ao abrir a porta, viu dezenas de pessoas estranhas armando barracos de lona dentro de suas terras. Não pôde fazer nada. Desse momento em diante sentiu como se um abismo estivesse sendo aberto aos seus pés.
Não durou muito para que ele e o filho tivessem que abandonar sua casa, enxotados pelos “novos donos”. Saíram quase sem nada, somente com a roupa do corpo e o que puderam levar em duas viagens de carro-de-bois. Foram morar de favor em outro lugar, numa tapera abandonada num pedaço de chão de um amigo. O filho não suportou aquela situação, foi arriscar a vida no sul e ele ficou ali, sozinho, vendo o tempo passar e na esperança de que o governo pagasse logo a indenização pela desapropriação de suas terras. Ficou sabendo que não durou muito para que os seus ex-vizinhos recebessem grandes somas pelos alegados prejuízos sofridos, mas o reconhecimento do seu direito, com o justo pagamento, foi sendo eternamente adiado. Dia após dia, passados mais de dez anos, e nada.
Vivendo em situação de miséria, com o passado lhe corroendo o restante das forças já fragilizadas, o desejo de ver o filho retornando e as últimas esperanças sempre adiadas, eis o quadro de um sertanejo triste. Até os muitos amigos de antes foram sumindo com o tempo. Desde a manhã até o correr da noite, o mesmo martírio lhe consumindo. Ainda no escurecer da madrugada abria a porta e sentava num tronco logo em frente ao barraco e aos poucos, a cada novo despertar e dirigir-se ao mesmo lugar, começou a enxergar as imagens de três pessoas que se aproximavam lentamente. Não tinha medo, precisava enxergar melhor aqueles vultos. Numa dessas madrugadas escurecidas abriu a porta, sentou e esperou, e viu com clareza que aqueles vultos eram de sua esposa e seus dois filhos. Naquele momento esboçou seu último sorriso de alegria.
Verdade é que ninguém nunca mais viu o velho sertanejo por aquelas paragens. Para muitos, também tanto faz...



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com

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