OS FILHOS COM FOME, FURTOU UM PACOTE DE BISCOITOS E FOI PRESA?
Rangel Alves da Costa*
As pessoas de coração mais aberto à sensibilidade e à valorização do ser humano, geralmente ficam estarrecidas quando a imprensa estampa nos noticiários que fulana de tal está presa em uma delegacia por haver furtado um pacote de alimento numa mercearia ou mercadinho.
Entrevistada na cela repleta de detidas perigosas, e tida também como infratora potencial, logo relata sua versão para os fatos que a levaram àquela situação: “Abandonada pelo marido com dois filhos pequenos, desempregada, já com vergonha de estar pedindo aos vizinhos qualquer resto de comida para dar às crianças, quando viu que estas não paravam de chorar o coração apertou, mas decidiu pegar escondido um pacote de biscoito no mercadinho das proximidades. Já ia saindo e foi quando perceberam e chamaram a polícia, e há dois dias que já está ali e sem saber o que vai acontecer”. É apenas um relato fictício, porém de cunho verdadeiro, e que ocorre muito mais do que se imagina e a imprensa mostra.
Pois bem, numa situação como a exposta, quando houve a subtração às escondidas do pacote de biscoito, pressupõe-se logo que houve furto, na sua modalidade privilegiada ou mínima, ou mesmo que houve apenas uma tentativa de furto, vez que o biscoito não saiu da esfera do mercadinho nem passou para a posse tranqüila da infratora.
Com efeito, reza o art. 155 do Código Penal que furto é “Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”. Cuidando do furto privilegiado, diz o seu § 2º: “Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa”. Tal disposição é também aplicável à tentativa, atenuando-se a imputação da pena.
Verdade é que, no caso fictício citado, a fulana de tal está presa em uma delegacia, passando por vexames, sofrendo constrangimentos e, não raro, tendo a sua integridade física violada. E os filhos, como estarão? A polícia que a encarcerou providenciou a ida imediata de uma assistente social à sua residência para verificar a situação dos menores? Não pode constituir advogado, não espera muito que alguém venha em seu auxílio, não sabe o que será feito dela. Mas, meu Deus, isso tudo somente porque tentou matar a fome dos seus filhos furtando um pacote de biscoito? E vai a polícia e prende como uma marginal qualquer, e o delegado não quer nem saber sobre motivos e circunstâncias. Simplesmente está ali, presa jogada à própria sorte e sem a luz que ilumine a consciência das autoridades.
Sim, inegável que houve uma tentativa de furto, o que, por si mesmo, se constitui um crime. Contudo, douta autoridade, algum dia, nos bancos universitários, já ouviu falar em furto famélico, ou seja, aquele tipo de crime onde o ato praticado é de natureza alimentícia e para o qual não há condenação? Talvez não tenha ouvido falar porque o Código Penal não tipifica tal crime, cabendo a doutrina e a jurisprudência torná-lo reconhecido como forma de proteger aqueles que praticam pequenos furtos de alimentos exclusivamente para subsistir.
Para os doutrinadores, o furto famélico ocorre nas situações em que a pessoa em estado de extrema penúria tem a inadiável necessidade de se alimentar e, perseguindo este objetivo, subtrai algo de terceiro. Tem lugar quando o agente, demonstrando condição de maior indigência, subtrai gêneros alimentícios para satisfazer privação inadiável sua ou de seus familiares. Ou ainda, é aquele em que o indivíduo pratica o crime para poder continuar sobrevivendo. Em tais circunstâncias não seria justo apenar-se um ser humano por
seu ato, embora tipicamente previsto.
A exclusão da ilicitude (ter o furto famélico como um ato não culpável) é decorrência da permissão concedida pelo Direito para que o indivíduo, no intuito de proteger interesse próprio ou alheio, lesione o bem de outrem, desde que seu sacrifício seja imprescindível para a sobrevivência. É a prevalência do denominado estado de necessidade previsto no art. 24 do Código Penal: “Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se”.
No caso citado, em consonância com os requisitos do estado de necessidade, não houve crime com previsão de pena porque: houve perigo atual (a fome poderia fragilizar a saúde das crianças); houve ameaça a direito próprio e de terceiros, cujo sacrifício era irrazoável exigir-se (viver com dignidade, com alimentação e saúde é previsão constitucional, porém não cumprida pelo Estado que agora surge como algoz); situação não provocada pela vontade do agente (furtar o biscoito não foi um desejo da mãe, mas uma deliberação extrema pela fome dos filhos); conduta inevitável de outro modo (se não desse alimento, o que poderia ocorrer com os filhos?); inexistência do dever legal de enfrentar o perigo (não há lei que obrigue uma mãe deixar passiva e tranquilamente que os seus chorem com fome).
Mas a genitora dos menores continua presa, jogada na carceragem, sem que ninguém tome as providências cabíveis. O que poderá ser feito? É doloroso, lamentável afirmar que pouco poderá ser feito. E por que? Principalmente porque quando alguém é preso dificilmente a autoridade policial preocupa-se em saber os motivos e as circunstâncias em que se deu o fato. Uma vez preso, ao chegar na delegacia o indivíduo nada mais é do que uma deplorável estatística, “mais um”, depois é jogado na cela, indiciado e pronto. De resto, o seu futuro será entregue nas mãos da justiça. Assim é o tratamento, tanto para aquele que acabou de cometer um crime hediondo ou para aquele que tentou furtar um pacote de biscoito.
Caberia a autoridade policial, com conhecimento das leis e da realidade dos fatos, ao menos – e isto num gesto de altivez e bom senso humano – sopesar circunstâncias e conseqüências, delimitar o crime e o erro, o desvio e a pretensão, e assim proporcionar aos acusados pela prática de furtos famélicos o mesmo tratamento que se dá a um amigo que está com problemas pessoais: sentar, explicar a realidade dos fatos e, acima de tudo, aconselhar. Depois, nada mais resta a não ser colocar o acusado em liberdade, ademais porque efetivamente não há nenhum crime a ser punido. Jogar essa responsabilidade para que a justiça decida é o mesmo que matar quem já está morrendo, e de fome.
Mas não, para muitas autoridades policiais é preferível deixar a pessoa presa e os filhos e outros familiares sofrendo; é revestida de legalidade a realização vagarosa do inquérito policial e a sua remessa à justiça; é melhor “lavar as mãos” para que não digam que favoreceu este ou aquele. O pior é que sabem que a justiça vai chegar à conclusão de que houve estado de necessidade, vai mandar arquivar o processo e soltar a pessoa que foi presa. É lamentável, mas é assim que funciona.
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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