VIOLÊNCIA POLICIAL: ABUSO E LEGITIMIDADE DE AÇÃO
Rangel Alves da Costa*
No mês de setembro de 2008, um vereador de Aracaju ocupou a tribuna da Câmara para denunciar uma ação da Polícia Militar do Estado de Sergipe, quando jovens que jogavam futebol no campo da escola Freitas Brandão, localizada no bairro Suissa, foram agredidos por policiais militares. Por ter passado do horário permitido, os policias foram chamados e os jovens espancados. Na mesma ocasião, os policiais tentaram ainda invadir uma residência, mesmo não tendo o mandado judicial (Nenotícias – 9/9/2008). “Foi um verdadeiro "show" de eficácia a atuação de policiais da Rádio Patrulha que chegaram no local rapidamente e usando de indisfarçável truculência conseguiram em questão de minutos acabar com a manifestação estudantil, chegando a prender um dos alunos e imobilizando outro com spray de pimenta” (Correio de Sergipe – 31/10/2007).”Os principais problemas de violações de direitos humanos em Sergipe são a violência policial, inclusive contra crianças e adolescentes” (DHnet). “Agressões, calúnias e abuso de poder marcaram a abordagem da polícia a civis no último fim de semana em Aracaju. Três vítimas, sendo uma de Salvador, BA, prestaram queixa na Delegacia Plantonista contra policiais militares violentos, e duas delas estão com o exame de corpo de delito marcado para amanhã logo cedo, no Instituto Médico Legal (Cinform – 9/7/2007).
As notícias relatadas acima, envolvendo práticas de violência da polícia sergipana, parecem antigas, podendo mesmo sugerir que são fatos passados que não persistem mais em sua contundência. Ledo engano, até que se prove o contrário. Passam-se os anos, assume comandante e sai comandante; assume superintendente e sai superintendente, e as condutas de abusos de violência parecem continuar indistintamente levadas a efeito nas ações daqueles que têm o compromisso maior de dar segurança aos cidadãos. A violência velada, a violência necessária, a violência exagerada, a violência pela violência, a violência instintiva e acobertada pela função, tudo é violência, e, ao que deixa transparecer, tudo é praticado sem maiores conseqüências.
O que é noticiado pela imprensa, o que chega ao conhecimento da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SE ou o que se transforma em procedimento administrativo ou processo judicial, são casos pontuais e que não refletem a dimensão da violência que é efetiva e cotidianamente praticada. O medo da população carente e submetida, a imposição pelo silêncio que é feita, a promessa de reiteração das truculências, sem se falar do temor generalizado que a população sente pela polícia, reflete bem o sentimento das pessoas quando das abordagens e das intervenções policiais. Após a desmoralização, o sofrimento físico, a cruel manifestação do preconceito, o constrangimento sofrido e a ferida aberta na dignidade e integridade, um exame de corpo delito quase nenhuma conseqüência reparadora trará.
A violência é conceito por demais conhecido, vivenciado pelas pessoas ora como agentes ora como vítimas. De um modo geral, consiste basicamente em uma ação direta ou indireta, destinada a limitar, ferir ou destruir as pessoas ou os bens. Segundo o Dicionário Houaiss, violência é a “ação ou efeito de violentar, de empregar força física (contra alguém ou algo) ou intimidação moral contra (alguém); ato violento, crueldade, força”. No aspecto jurídico, o mesmo dicionário define o termo como o “constrangimento físico ou moral exercido sobre alguém, para obrigá-lo a submeter-se à vontade de outrem; coação”. Assim, um ato pode ser caracterizado como violento quando causar dano a terceiros, usar força física ou psíquica, ser intencional e ir contra a vontade de quem é atingido. Pode ainda ser classificada como social ou urbana, psicológica, moral e física.
Por sua vez, situando de modo específico, violência policial é abordada pelos estudiosos sob quatro concepções diferentes: O uso da força física contra outra pessoa de forma ilegal, não relacionada ao cumprimento do dever legal ou de forma proibida por Lei; o uso desnecessário ou excessivo da força para resolver pequenos conflitos ou para prender um criminoso de forma ilegítima; os usos irregulares, anormais, escandalosos ou chocantes da força física contra outras pessoas; o uso de mais força física do que um policial altamente competente consideraria necessário em uma determinada situação. Relacionando tais aspectos, definiríamos a violência policial como o uso ilegal e ilegítimo da força ou da coação, no exercício da função estatal de segurança pública, de forma desnecessária ou excessiva contra outras pessoas.
Esse tipo de prática policial definida acima é também denominada violência ilegal ou ilegítima, em oposição à violência legal ou legítima. A ação ilegal pode ser observada cotidianamente nas abordagens truculentas das forças policiais, no uso constante da força ilegítima para imobilizar os oponentes da lei, na utilização indiscriminada da arma de fogo, nas práticas de torturas, nas execuções sumárias, na violência causada nos presídios e delegacias, bem como na violação generalizada dos direitos humanos, dentre outros casos.
Por sua vez, a ação legal ou legítima é aquela onde o uso da força é permitido para o controle da ordem pública e o cumprimento da lei. É uma violência dita legal porque é exercida com autorização legal pelos agentes do Estado, que detém o monopólio do uso da violência. Consequentemente, o uso da força torna-se permitida aos policiais nas ações repressivas, porém é essa permissividade, praticada por agentes despreparados, psicologicamente afetados e mal-intencionados, que desanda para a arbitrariedade, a truculência e todos os casos de abusos e desrespeito à integridade física e a dignidade do cidadão.
O poder de uso da força legítima ou violência legal, concedido pelo Estado aos seus agentes da segurança pública, é preceito constitucional. Com efeito, o art. 144 da Constituição Federal preceitua que a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos órgãos policiais. Assim, a polícia representa o aparelho repressivo do Estado que tem sua atuação pautada no uso da violência legítima. Nesse contexto, quando age em dissonância com sua competência, atuando arbitrariamente e usando excessivamente da força e da violência, o policial não só macula sua imagem e da corporação, como também vai de encontro ao Estado democrática de direito, onde a lei é o limite da ação.
Ademais, a limitação da ação dos agentes estatais, logicamente estendido ao trabalho policial, possui fronteiras constitucionalmente delimitadas, onde o respeito à integridade física e à dignidade humana não pode ser afrontado sob pena de colocar em desvalia a prevalência universal do princípio dos direitos humanos, em sua plenitude. Assim, quando a norma constitucional diz que o Estado brasileiro tem como um dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana (Art.1º, III) ou que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (Art.5º, III), não está cuidando de algo teoricamente inaplicável, mas sim de uma efetiva exigência da preservação dos direitos do homem, sem a qual a arbitrariedade, a insegurança e o medo se generalizariam e a vida em sociedade voltaria a um estágio de barbárie.
Advogado e poeta
Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SE
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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