SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 8 de agosto de 2013

A SOLIDÃO DO MANDACARU (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Agora não, pois está tudo verdejante e o mandacaru não quer outra vida senão ficar olhando sorridente para a paisagem sertaneja renascida. Muito diferente, mas muito diferente mesmo, de tempos atrás, quando tudo estava seco e esturricado e os seus olhos mal podiam avistar aqueles dolorosos sinais da triste desolação.
Foi um tempo de dor e aflição, ainda recorda o mandacaru. Tudo triste, cinzento, querendo incendiar pela fogueira do sol do dia inteiro. E o que era lugar de bicho, planta e gente, de repente foi se tornando deserto, desolado, terra de nenhuma existência.
De repente não, pois tudo lentamente acontecendo. O sol insistindo em queimar cada vez mais forte, o céu sem qualquer sinal de nuvem de chuva, o bicho entristecendo, a planta fraquejada se recurvando, a ventania quente derrubando o que ainda se pendurava nas galhagens.
A paisagem foi completamente se tomando de um acinzentado sombrio. Os caminhos das fontes salobras e barrentas não eram mais percorridos. Também pudera, não havia mais água. E pedaço de lama é duro demais de roer. Do mesmo modo não havia mais comida nem sombra de descanso e sono. A magrez do arvoredo deixava tudo desnudado e sem vida.
E aos poucos, depois da fome e do emagrecimento, da tristeza e da desesperança, os bichos ainda resistentes foram sumindo. Bicho de pena e asa voou para desfalecer noutro lugar, bicho de pé e osso, já sem forças, foi caindo por ali mesmo, morrendo ali mesmo. E às carcaças se juntavam os restos de folhas secas trazidos pela ventania.
Mandacaru, ainda que tão acostumado com as épocas das estiagens, símbolo maior da resistência sertaneja, jamais havia vivenciado uma situação daquelas, tão estarrecedora. Seus olhos, que outrora se enchiam de lágrimas para chorar tanto sofrimento, daquela vez pareciam também ressequidos, sem derramar uma lágrima sequer.
Um espelho apenas. E espelho de um olhar que parecia insensível diante daquela visão. Apenas a opacidade avistando réstias, sombras, talvez miragens. Mas não estava cegando não. Os raios do sol caíam tão fortes que transformavam as paisagens em neblinas enfumaçadas, delirantes, apavorantes.
Ainda assim viu a palma secar e morrer; viu o facheiro esturricar, depois acinzentar e ficar somente na pele e no osso; viu o xiquexique emagrecer, perder o verdor e os espinhos, e depois os seus braços se dobrarem ao desalento. E também algo inacreditável: uma labareda parecia sair do rochedo adiante. E ele mesmo, o mandacaru, fragilizado demais.
Sua raiz sertaneja, sua força autenticamente nordestina, fazia com que continuasse resistindo. Não sabia até quando, mas continuava em pé e como última testemunha ainda com forças para presenciar aquela angustiante situação. E ele mesmo sabia que se tombasse para a morte seria o sinal maior do fim de todo o sertão, pois representante da última esperança matuta.
Mas não sabia se suportaria muito tempo. Sentia por dentro um enfraquecimento muito além da velhice; sentia na pele as cicatrizes da falta d’água; e por tudo isso também sentia que iria bem antes daquele calango que costumava subir nos seus braços para olhar as distâncias desnudas de tudo.
Aquele calango continuava resistindo, mas talvez fosse o último, pois não avistava mais nenhum ser vivente saindo ou se movendo pelas locas das pedras. Nem o preá, que é bicho acostumado com a seca, era visto por cima do braseiro da terra. Algum cágado existente estava bem entocado, talvez se esforçando para pressentir qualquer sinal de trovoada.
Pois era neste cenário que estava o velho mandacaru e sua interminável solidão. E solitário porque, a não ser o calango, não havia qualquer outro bicho ou planta para ser avistado com vida e lhe fazer companhia. Os que ainda sobreviviam silenciavam numa mudez sem fim. Era o espanto com o terror, o assombro que silenciava o grito e mortificava a alma. E ele testemunhando tudo. Silenciosa e solitariamente suportando tudo.
Contudo, o pior é que agora acham que ele enlouqueceu, que o velho mandacaru maluqueceu de vez. Olham na sua direção e o avistam sorridente e com os olhos brilhando. E sempre assim, dia e noite. Por isso mesmo afirmam que perdeu completamente o juízo.
Mas não. É apenas a felicidade. Recordar da tristeza e da solidão de ontem, e agora presenciar novamente a terra em festa pelas trovoadas, pelas vozes da natureza e da bicharada, realmente provoca uma contínua sensação de alegria e arrebatamento.
Continua solitário, mas em meio de muitos. Calangos, preás, nambus, codornas, rolinhas, teiús, caititus, sariemas...


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

2 comentários:

Anônimo disse...

enanceMestre Rangel: O meu bom-dia.
Diante de mais uma crônica tão expressiva (e real), ainda que a minha cansada inteligência não encontre condição perfeita para comentá-la, não posso deixar passar em branco, logo que pertenço ao mesmo solo deste vasto SERTÃO que viu a seca inclemente devorar plantas, animais - e quem sabe, GENTE, que sofria vendo seus animais transformados em carcaça, e nada podia fazer.
Os lamentos dos nossos sertanejos eram demonstrado na fisionomia triste na presença inevitável da morte dos seus bichinhos de estimação. Posso afirmar, porque, embora eu nada crie, mas havia comprado dez vacas para meu menino de dez anos (Filipe) divertir-se com os bezerros e com O MANSO REPRODUTOR AZULÃO em que ele montava, e, logo no começo da estiagem, aconselhei-o vender tudo, porque capim deixou de existir em nossa região. Muito tristes (ele e eu)ficamos, mas, como lutar contra a NATUREZA?
Contudo, caro poeta, hoje, o nosso sertanejo "QUE É ANTES DE TUDO, UM FORTE", voltou a alegrar-se ao contemplar as roças cheias de milho maduro e as máquinas batendo o feijão, às vezes, dia e noite. Assim é o nosso SERTÃO. Sertão de um povo tão forte que aprendeu a viver com as intempéries. Sertão de um povo que não se deixa abater pelas pequenas adversidades. Sertão de um povo, que ainda passando por momentos de apuros, sabe enfrentar desafios. Sertão de um povo que pula da cama DUAS E MEIA DA MANHÃ E COMEÇA ESCREVER MATÉRIAS PARA DEIXAR PARA A POSTERIDADE. Só não eu, que durmo depois da ZERO HORA, mas conheço ALGUÉM que assim o faz: nas madrugadas está postando importantes matérias. Sertão de um povo tão resistente como A PLANTA MANDACARU. Parabéns senhor Filósofo.
Antonio José de Oliveira - Povoado Bela Vista - Serrinha-Ba.

Anônimo disse...

Rangel amigo: no termo MESTRE RANGEL
houve um lapso ao digitar. Portanto, não existe a palavra enance. Ela será desprezada do texto.
Antonio.