Rangel Alves da
Costa*
Nos
últimos tempos tenho revisitado meus escritos cangaceiros, rabiscado textos,
rebuscado galhos esquecidos naquelas veredas nordestinas. E nesse passo de
difícil caminhada, pois sempre marcada pelas ameaças das pedras e espinhos,
reencontrei, debaixo de um tímido sombreado de catingueira, a figura de Zé de
Julião, ou Cajazeira, o ex-cangaceiro.
Desde
muito que reverencio a história desse meu conterrâneo de Nossa Senhora da
Conceição de Poço Redondo. Foi meu pai Alcino Alves Costa quem me abriu os
caminhos não só para o interesse pela saga cangaceira como para a história
particular de José Francisco do Nascimento, seu nome de batismo. Alcino foi,
indubitavelmente, guardião e expoente maior de toda raiz sertaneja.
Não com a
maestria ímpar do saudoso pesquisador, mas de vez em quando me vejo diante do
retrato histórico de Zé de Julião. E mais do homem ao do cangaceiro porque foi
na sua trajetória fora do bando que reside toda a pujança de sua saga. No bando
foi apenas mais um cangaceiro, enquanto o seu outro itinerário sertanejo pode
ser descrito como uma verdadeira epopéia agrestina.
Noutros
textos procurei abordar aspectos desse percurso. Contudo, tudo muito
timidamente, no apressado dos escritos, sem um aprofundamento maior. Cheguei a
confessar ao amigo Antonio José de Oliveira, lá das lonjuras baianas de
Serrinha (Povoado Bela Vista), que precisaria escrever um livro para descrever
ao menos parte dos mistérios que ainda persistem na vida de Zé de Julião,
principalmente acerca da trama que culminou com sua morte. Emboscada, traição,
crime de mando, vindita de mataria?
Estava
pensando em tais aspectos quando me vieram à mente outras recordações. Fato
inusitado, mas a verdade é que comecei a recordar de uma velha senhora,
Constância do Nascimento, mais conhecida como Dona Constança ou a Velha Constança,
segundo desejasse chamá-la sua gente de Poço Redondo. Tive o prazer de
conhecê-la e, mais que isso, compartilhar alguns momentos a seu lado, mesmo que
naquele tempo jamais soubesse de quem realmente se tratava. Apenas uma
envelhecida sertaneja, pensava.
Somente depois,
após o seu falecimento, fiquei conhecendo a realidade sobre aquela mulher e sua
importância histórica na região. E é difícil, agora, imaginar que uma pessoa,
depois do peso dos anos e do fardo de tantas lutas, chegasse à velhice naquelas
condições que eu a encontrava. E mais difícil ainda imaginar o quanto deve ser
dolorosa a ingratidão e o descaso humano.
Textos
atrás escrevi acerca do esquecimento imposto àqueles que foram personagens
importantes da história poço-redondense. E a Velha Constança se insere nesse
contexto. A prova maior é que a população se mantinha totalmente silenciada
acerca do passado familiar daquela senhora, vivendo praticamente esquecida até
mesmo pela própria estirpe. O desfecho dessa condição de abandono deixarei para
mais adiante.
Antecipo
apenas que o destino me colocou no caminho daquela velha senhora, e ela, um dia,
naquele passado de quase quarenta anos, me olhou nos olhos e viu um amigo,
ainda que meninote com pouco mais de doze anos de idade. Hoje estou com
cinquenta, mas é como ainda a avistasse em minha frente, toda pequenina,
arqueada, com seu rosto enrugado e olhar vívido feito flor de mandacaru.
Agora
digo. Aquela velha senhora outra não era senão a mãe do ex-cangaceiro
Cajazeira. O mesmo Zé de Julião que após a morte de Lampião tentou refazer a
vida em meio a perseguições e injustiças, sendo por duas vezes candidato a
prefeito, fraudado nas suas tentativas, preso e assassinado, ainda por
motivações políticas, tempos depois. Era ainda a mesma senhora abastada no
passado, cujo esposo Julião do Nascimento era um dos maiores fazendeiros da
região. Tem-se, pois, que quando Zé de Julião entrou no cangaço saía do seio de
uma família rica para o lugar e de inestimável conceito.
Foi o
tempo reverso, esse fadário chamado tempo/destino, que tornou a vida daquela
mulher no completo inverso do que era antes. Após o falecimento do esposo e
desavenças familiares durante a partilha de bens e após a morte do filho
famoso, acabaram tornando a Velha Constança numa pessoa cada vez mais
solitária. E também abandonada. Recolheu-se a um pedaço de terra nas
proximidades da cidade e ali ficou morando sozinha.
Vivendo
isolada, só vinha à cidade no dia da feira. Mas não para fazer compras
sortidas, daquilo que necessitasse, mas para mendigar a sobrevivência. E foi
nessa situação, num dia de feira, que a encontrei pela primeira vez. Desse
momento em diante firmamos um compromisso que somente Deus para saber como
aquilo poderia ter acontecido. E da forma como aconteceu, bem como a
consequência maior dessa amizade.
Os passos
seguintes transcrevo de um texto que escrevi a uns dois ou três anos, falando das
proezas do nosso destino. Eis, dentre outras situações, o que relatei:
“Nos
tempos de meninote na cidadezinha matuta, aprendi desde cedo a tecer uma rede
vasta e contínua de amizade não só com aqueles da minha idade mas também, e
principalmente, com as pessoas mais velhas. Talvez porque meu pai era muito
influente politicamente naquela época – foi prefeito por três vezes – e eu
sempre estava vendo pessoas em casa pedindo ajuda pra isso ou aquilo,
conhecendo nos outros a pobreza e o sofrimento, é que foi nascendo no meu
espírito um privilegiado senso de afeição ao mais humilde, ao sertanejo mais
carente. E considerando-se quantos carentes de tudo existiam espalhados por
aquele mundão, e imagine quantos amigos tive a felicidade de fazer.
Mesmo
estudando na capital, todos os finais de semana tomava o caminho de casa.
Chegando, dificilmente as pessoas me viam brincando ou conversando com os amigos,
senão em outros afazeres voltados para estar sempre próximo àquelas pessoas
simples e maravilhosas, ouvindo seus causos, suas reclamações, seus queixumes,
seus relatos de esperança, suas alegrias e tristezas. Não marcava presença
apenas fisicamente, pois sempre me preocupava em conseguir qualquer alimento ou
outra coisa para deixar mais feliz o meu interlocutor.
Lembro bem
que aos domingos - o dia de feira na cidade à época -, muitas daquelas pessoas
que eu já conhecia me procuravam para pedir um quilo disso ou daquilo, pra
arranjar uma havaiana, para que eu desse qualquer coisa. Sabia bem das
necessidades de cada um e na medida do possível sempre possibilitava um sorriso
naqueles rostos tão envelhecidos pelo sol e pelas desilusões. E assim, com a
ordem do meu pai, eu ia lá na vendinha de Dom ou de Zé Preto, ou ainda na
mercearia de seu João, e saía com qualquer coisa para um e pra outro. E não
foram poucas as vezes que levava pessoas para almoçar em casa, muitas vezes
pouco conhecidas, mas só pelo prazer em poder servir afastando a fome por
alguns instantes.
Foi nesse
itinerário de amizade com os humildes sertanejos que um dia conheci uma senhora
já bastante idosa, com sinais de quem havia sido muito bonita na mocidade, mas
que na época, pela pobreza e sofrimento, era apenas uma velhinha. O seu nome
era Constância, mais conhecida por Constança. Conheci essa mulher no meu
andajar pela feira, nas minhas lides domingueiras, correndo de lado a outro.
Morava sozinha, num local um pouco afastado da cidade, de onde só saía para ir
à cidade no dia da feira.
Dona
Constança conhecia minha família, sabia que eu era filho do prefeito. Contudo,
ao pedir que lhe desse alguma coisa não tinha a intenção de se aproveitar
disso, tenho a máxima certeza. Verdade é que fui criando um carinho todo
especial por aquela senhora, garantindo sempre que todos os finais de semana
ela recebesse uma feirinha. Quando eu não podia estar em Poço Redondo ela se
dirigia até minha casa, onde minha mãe, D. Peta, conhecedora daquela mulher e
de sua história, já estava com tudo providenciado.
E foi numa
dessas vezes que ela chegou lá em casa e ficou conversando com minha mãe por mais
tempo que o costumeiro. Acabou dizendo que gostava tanto de mim que tinha a
certeza de que quando falecesse eu daria o seu caixão. Quando retornei e minha
mãe me falou sobre isso fiquei sem jeito e até assustado. Mas o que fazer se
era desejo dela que eu servisse mesmo num instante inusitado e difícil. E
fiquei matutando sobre isso. Onde eu estivesse ficava na minha mente a
lembrança desse pedido.
Minha mãe
já a havia dito para não se preocupar, pois mesmo que eu não estivesse por lá,
quando falecesse não deixaria de ser enterrada com dignidade. E ela se foi
desse mundo justamente quando eu não estava no sertão. Soube do fato ainda na
capital e fiquei muito triste, mas ao mesmo tempo reconfortado porque o seu
desejo havia sido atendido. E que ela descansasse em paz, orei.
Quer
dizer, aquela senhora minha amiga e que tanto ajudei era a mãe de um dos homens
mais importantes da história de Poço Redondo e outrora havia sido uma
portentosa latifundiária. Um dia havia me pedido que desse o caixão para ser
enterrada quando morresse. Assim mesmo acontece por uma escrita que não a nossa.
São as coisas da vida”.
Eis a
história que até hoje me comove.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Caro Professor RANGEL: Diante das importantes informações que você vem colhendo pessoalmente e através do saudoso Escritor ALCINO COSTA, e transformando-as em valiosas matérias, como é o caso da genitora de Zé de Julião, só posso repetir o que me falou o ilustre Delegado e Escritor Archimedes Marques através E-mail.
Veja as palavras do Dr. Arquimedes: "RANGEL ALVES DA COSTA É TUDO QUE VOCÊ FALOU E MUITO MAIS. HÁ MUITO ELE JÁ DEVERIA SER UM IMORTAL DA ACADEMIA SERGIPANA DE LETRAS."
Se houver erro de português na escrita acima, saiba que não é do Dr. Arquimedes, e sim, meu, pois não sou professor de Português como é o caso do nobre Professor MENDES. Sempre que eu errar, corrija-me por favor. Grato e parabéns pelas crônicas e artigos de tão grande utilidade para mim - um neo-pesquisador do cangaço. Antonio José de Oliveira - Povoado Bela Vista - Serrinha-Ba.
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