Rangel Alves da
Costa*
Homem que
carrega a canga. Mas canga não no sentido de tronco atravessado às costas, mas
levando por cima dos ombros o peso da opressão, o fardo da exploração, a carga
da submissão humana aos ditames das injustiças sociais e dos mandos
governamentais e coronelistas. Mas nem de todos os coronéis, que se diga.
Sertanejo
das brenhas do mundo. Sofrido até dizer chega, explorado até dizer basta,
subjugado pelo poder político e econômico, esquecido de tudo, com serventia apenas
para mostrar sua coragem para lutar. E foi assim que fez. Um dia foi chamado à
luta e enveredou pelas caatingas construindo o seu próprio destino.
As
motivações? Todas e muitos mais. Um Nordeste de latifúndios, de poder político
encanecido pelas velhas e desumanas práticas, onde o pobre sertanejo era tido
muito mais como objeto do que qualquer outra coisa. E por cima do matuto as
imposições tributárias, as injustiças sombreando os mais fracos, a escravização
sem precisar de chibata e grilhão.
Eis um homem
desencantado com o seu meio, fugindo das perseguições, sendo ferido na sua
honra, sendo aviltado pelos abusos policiais e das autoridades. E também as
rixas pessoais, os desejos de vingança, as promessas e ilusões de um meio onde
só cabia os mais valentes e destemidos. Tudo isso, e muito mais, motivou o
passo na vida cangaceira.
Homem
rude, iletrado, do mato, da mataria, das distâncias de tudo. Mas nem sempre
assim. Muito cangaceiro sabia ler e escrever, tinha tino no juízo, sabia o que
queria, possuía uma ideologia e conhecia bem o significado de sua vida e de sua
luta. Um ou outro, como Cajazeira, era de família abastada. Percorrer as
caatingas e viver debaixo de lua e sol, desafiando autoridades e enfrentado
constantes perigos, eis a sina deliberada no mundo injusto e cruel.
Homem da
terra, cheirando a sol, a suor, a sangue estancado da luta, a bicho do mato, a
fumaça do fogo do coito, a chumbo do cano quente e enfumaçado. Mas também um
destemido vaidoso, perfumado de qualquer loção, cheio de adornos e ornamentos
dourados, com uma trova na língua e uma canção dolente cortando o silêncio das
noites sertanejas enluaradas. E tantos amores embrenhados na cama da terra
espinhenta.
Sertanejo
de longa história, do passo catingueiro lá desde séculos passados. Desde o
século XIX que começou a fazer história até sua saga ter fim já no século
passado, depois da bala certeira dada em Corisco, lá pelos idos de 1940.
Cangaceiro de bandos primitivos, como os de Lucas Evangelista, o Lucas da
Feira; Jesuíno Alves Calado, o Jesuíno Brilhante; Antônio Silvino; e Virgulino
Ferreira da Silva, o Lampião. E também o bando desgarrado de Corisco, o Diabo
Louro.
De
características inconfundíveis, vestia seu manto encourado, sua calça lonada,
sua preferência azulada, seu brim desgastado na passarela de urtiga e
cansanção, ponta de pau e espinho traiçoeira, vereda encoberta e mataria
fechada. Dia e noite na luta e sempre no porte altaneiro, ainda que o brilho
das joias e o colorido das roupas estivessem ofuscados pela poeira da lide.
Cabra
valente de estética desafiadora para a vida difícil que levava. Chapéu de couro
estendido, ovalado e com estrelas estilizadas ou medalhões de metal na porta
frontal da aba. Um ou outro usava a jabiraca, que era um lenço envolvendo e
descendo pelo pescoço. Encontrar um cabra assim nas caatingas já sabia o que
era. Cangaceiro, seu moço, cabra valente sim.
Alpercata
de couro cru, mais conhecida como “apracata de rabicho”, possuía a leveza
apropriada para cortar os tantos caminhos difíceis e subir e descer as trilhas
mais íngremes. E também mais fácil de virar a frente pra trás para enganar a
volante sempre no encalço. Cartucheira cortando o peito, também cruzava o couro
do embornal do ombro até a cintura. Um cantil também enfeitado, estilizado. Era
tudo pesado, desde a roupa e adereços até chegar aos mantimentos que carregava.
Falam em mais de vinte quilos.
Anéis
adornando os dedos, alianças enfeitando o chapéu, cabelos mais alongados,
muitas vezes repuxados na brilhantina ou óleo de coco. Costumava carregar peças
de ouro e moedas no embornal. Não esquecia o perfume, a gaita ou qualquer outro
instrumento. Armado até os dentes, o peso maior se dava por conta das armas e
da farta munição que levava.
O
armamento se diversificava, podendo ser revólver, pistola, mosquetão ou fuzil,
sem falar no velho rifle Winchester, também conhecido como “papo amarelo”, mas
sempre acompanhado da faca ou punhal. E tudo de marca famosa: Revólver Colt,
Pistola Luger, Pistola Browning, Fuzil Mauser, Mosquetão Mauser, Winchester, Bergmann.
Onde conseguia? Quase tudo trazido pelo coiteiro, a mando do coronel amigo e
protetor. E logicamente protegido.
Uma vez
aceito no bando, o nome de batismo dava lugar a um apelido. Dali em diante
seria conhecido e chamado por nome de bicho, de pássaro, de elemento da
natureza ou de qualquer outra denominação que mais parecesse com o alcunhado. E
assim Jararaca, Zabelê, Corisco, Diferente, Mergulhão, dentre muitos outros. As
mulheres geralmente mantinham seus nomes. Alguns cangaceiros continuaram com os
seus nomes originais.
Mas falar
em cangaceiro é falar principalmente naquele cabra, e também mulher bonita, que
serviu ao bando do Capitão Lampião, o mais famoso de todos que enveredaram
pelos caminhos nordestinos revirados de trincheiras e respingados de sangue.
Até hoje é o bando de Lampião que sintetiza toda a história cangaceira e sua
luta. Virgulino foi o maior dos cangaceiros e o seu bando o mais famoso e
destemido.
Mas
afinal, o que era mesmo esse tal de cangaceiro, era gente ou bicho do mato,
pessoa ou desatinado, ser de carne e osso ou uma besta humana em busca da
próxima vítima? Cangaceiro vivia com cega maldade, jogando criancinha para o
alto e a recebendo na ponta do punhal, estuprando aonde chegava, ferrando quem
encontrasse, alastrando todo tipo de terror por onde passasse?
Pelo não
se encontra o sim, pela negação se encontra a verdade, pelo que o cangaceiro
não era é possível conhecer o que ele foi. E o que ele foi, por mais que se
atreva em dizer, sempre estará distante da crueza daquela realidade. Por isso
que todo dizer ainda falta alguma coisa a ser dita.
Mas
algumas coisas sopraram no vento da verdade e cimentaram na história. Não pela
certeza, mas pela lógica do acontecido e hoje tão analisado e lido. Disso
decorre não ter sido o cangaceiro um pistoleiro, um jagunço, um celerado
bandido, um assassino a sangue frio, um matador de aluguel, um delinqüente
qualquer, uma bestialidade desordeira. Contudo, muitos, no exagero e na
ignorância, procuram maculá-lo com as maiores infâmias do mundo.
Não, e
não. A verdade só quer um pouco de luz. E não porque não assassinava por
empreitada, não tocaiava desafeto de um mandante, não dava cabo de ninguém a
troco de conto de réis. Não era um bandido qualquer que assaltava ou salteava à
mão armada, não era um frio homicida que empunhava a arma na testa de um e
apertava o gatilho, não se desgarrava do bando para praticar vilezas e
atrocidades.
Também não
era salteador, pois não se escondia pelas beiradas das estradas para assaltar
quem passasse. Do mesmo modo, jamais agiu aos modos da jagunçada, fazendo
serviços para os coronéis em troca de vintém e proteção. O pacto de proteção ao
coronel era muito diferente. Era coisa de bicho grande, de coronel a coronel.
Nesse meio se envolvia para atemorizar um dos lados. Também nunca foi um
sicário, contratado para cometer qualquer espécie de crime.
Guardando
as proporções, pode-se dizer, isto sim, que não se distanciava muito do
bandoleiro, do facínora, do malfeitor, do errante, do justiceiro, do indignado.
Bandoleiro porque vivia em bando e agia segundo os ditames deste, mas sem a
intenção de praticar crimes comuns.
Facínora
porque muitas vezes agiu com extrema maldade e perversidade. Ora, a situação
exigia. Malfeitor porque contradizendo a lei de então, afrontando autoridades e
confrontando policiais. Justiceiro errante pela cega ilusão de que sua luta
inglória iria combater as injustiças que à época imperavam.
Mas como é
normal acontecer nos grupamentos humanos, verdade é que nem todos possuíam uma
índole aproximada. Alguns tentaram contradizer até mesmo as ordens do Capitão. E
estes, por bebedeira ou nos instantes de maior liberdade de ação, certamente
extravasaram, praticaram desmedidas atrocidades até com inocentes. Por isso que
não é mentira o ferro abrasado de Zé Baiano no rosto da donzela canindeense. O
JB fumegou na face da bela sertaneja.
Nem todos
foram assim. A grande maioria certamente que não. Na vida que levava, fugindo
de palmo em palmo, sendo caçado com fera perversa, tendo seus dias e suas
noites tomados de sobressaltos, não lhe restava outra coisa senão reagir,
confrontar, para continuar sobrevivendo. E quem não está disposto a ter morte
certa, logicamente que mata. Por isso que muito gatilho foi apertado, daí que
muita gente rolou de ribanceira abaixo.
Meu
parente cangaceiro, irmão de minha avó Emeliana, simplesmente voou para não
morrer naquele dia 28 de julho de 38, lá na Gruta do Angico. Com nome de
passarinho, Zabelê bateu asas que ninguém mais teve notícias. Não sei se um dia
alcançou o céu, mais que voou ele voou.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
2 comentários:
Nobre escritor RANGEL: As minhas saudações.
Esta é uma matéria de primeiríssima qualidade. É mais uma para meu arquivo, como tantas outras suas e de outros pesquisadores deste nosso Sertão de muitos Estados que interessam na manutenção de sua história.
Mudando de assunto, deixo-lhe informado que Gabriel fez a modificação da sua capa no dia de ontem e, imediatamente postei. Porém, como não sou bom em passar e-mail, tudo indica que aí não chegou, logo que você não mudou a mesma nesta madrugada. Vou mandar Gabriel analisar o que aconteceu.
Sobre o que falei para dia 30, pode conferir, já estará lá em ordem hoje.
Abraços,
Antonio Oliveira - Serrinha-Ba.
Boa tarde!
Caro Rangel!
Gostei muito dessa matéria.
Aprecio demais tudo que s refere ao sertão e seus personagem.
Obrigado por compartilhar.
Abraços
Sinval
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