Rangel Alves da
Costa*
Não negava
a ninguém. Matava porque era o jeito, por profissão, mas não gostava disso não.
Maldita hora que aceitou três contos de réis pra dar cabo de um pé rapado que
nem tinha onde cair morto. Tudo por causa de intriga do coronel que soubera
haver o cabra olhado pros peitos de uma de suas raparigas.
Tocaiou o
homem, enfiou-lhe dois chumbos quentes na testa e fez o caminho de volta para
receber o restante do pagamento. Foi seu maior erro, pois o coronel pagou o
acertado, mas disse que aquele dinheiro não lhe dava garantia nenhuma se saísse
dali. Certamente ia ser preso pela morte de um inocente, e mais ainda de
emboscada. Lascou-se pro resto da vida.
Sem saída,
ali mesmo foi ficando. Vinte anos depois e servindo de jagunço para o mesmo
patrão, já nem sabia quantos tinha derrubado e deixado estrebuchando nas
veredas ou curvas poeirentas daquele mundão de sangue e urubus. Com o tempo,
foi adquirindo uma frieza tal que tanto fazia atirar numa cabaça num pé de pau
como na testa de um desafeto de seu patrão.
Era
especialista em emboscada, em tocaia, em morte sendo cuspida dos tufos do mato,
das sombras fechadas dos arvoredos de beira de estrada. Ali chegava feito um
bicho do mato, silencioso, quase rastejante. E então se punha a esperar sua
vítima. Sabia que mais cedo ou mais tarde ela passaria ali, pois caminho, pois
lugar certeiro para seguir adiante. Um dia, dois dias, nada disso importava.
Quando menos esperava e o vulto apontava adiante. Então era hora de mostrar sua
maestria na arte da jagunçagem.
Levantava
um pouquinho se estava acocorado; se achegava mais pra perto da visão da
estrada; vagarosa e cuidadosamente abria uma pequena fresta em meio às folhas e
galhagens; verificava se a arma estava em ponto de tiro, com munição, sem
empecilho no cano nem no gatilho; esticava a mão levando nela a arma; aprumava
numa direção certeira; guiava o cano pela mira de um dos olhos, mantendo o
outro apenas entreaberto; e assim se mantinha firme, pronto para o fatídico
evento. O primeiro tiro.
Entretanto,
parecia uma eternidade desde o momento em que chegava ao local até o instante
em que fatalmente apertaria o gatilho. Nos últimos segundos, coisa de dez ou
vinte, certamente que não pensava noutra coisa senão sentir o fogo cuspindo o
estampido seco. Já estava fora de si e tomado apenas pela expectativa do acerto
e da visão do corpo atingido. E depois caindo.
Contudo,
até esse momento muita coisa se passava pela sua mente, ainda que para os
outros ali não houvesse nada além de uma fera, alguém que desde muito havia se
desumanizado e embrutecido os sentimentos. Bons ou maus, sentimentos haviam;
pensamentos bons ou ruins, fundados ou vazios, certamente que haviam. E tais
pensamentos martelavam sua cabeça desde o primeiro instante em que se punha no
local da tocaia.
Na solidão
da mataria, no silêncio sussurrante da natureza, não há ninguém que deixe de
refletir sobre a existência, o percurso de vida, o que fez e o que tem a fazer,
contrabalançando seus atos e ações. E nada disso se distanciava do jagunço.
Diferentemente do que qualquer um poderia imaginar, era dentro do tufo de mato
que encontrava seu verdadeiro confessionário, que conversava consigo mesmo e
lamentava e pedia perdão pelas ações tão medonhas.
Sua mente
fervilhava, clamava, gritava, silenciava, e dizia: “Até quando, até quando essa
vida de tirar a vida dos outros? Preso à sede de sangue de um coronel, deixo de
ser gente para me tornar num bicho sedento da vida do outro. E ninguém que seja
meu inimigo, ninguém que me tenha feito qualquer mal, ninguém que
verdadeiramente mereça morrer pelas minhas mãos. Até amigo já matei porque o
tinhoso mandou, até pessoas que eu sabia inocentes já tombaram pela minha arma.
E o que ganhei nisso tudo, o que tenho agora como prêmio por tantas covardias,
o que posso ter daqui em diante? Tenho filho, tenho mulher, e o que seria de
mim se alguém jogasse chumbo por cima deles? Eu não nasci pra isso, eu preciso
viver, preciso refazer minha vida. Mas sempre repito isso. E já repeti mais de
vinte vezes, e em mais de vinte mortes. Mas essa será a última. Ou nem será
mais a última, pois já não vou mais matar ninguém...”.
E ouve o
som do cavalo a galope. Estanca o pensamento e alonga a vista. É ele. E mira,
aponta, coloca o dedo no gatilho. Uma lágrima ainda escorre no canto do olho. A
lágrima desce pela tez crispada de sol. O olho mirando, a lágrima, o gatilho.
Será?
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Parabéns Professor Rangel pela continuidade de uma crônica muito bem narrada. Pelas histórias que nos contam os antigos dos tempos do coronelismo, não há muita diferença da sua crônica para a realidade dos velhos tempos.
Antonio José de Oliveira - Serrinha-Ba.
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