SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 3 de agosto de 2013

SOBRE PIOS E AGOUROS DEBAIXO DA LUA TRISTE (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Não bastassem as tantas vezes que o sertão se vê tomado de tristezas e sofrimentos por causa das longas secas e desolações, quando tudo parece que vai definhar e morrer, outros elementos assombrosos se assomam para aumentar a dor e o tormento. E as noites, que deveriam ser cantadas debaixo da lua, se tornam em sombras arrepiantes e entristecedoras.
Não há lua bonita que não entristeça com o piado agourento rondando a pobre moradia; não há cantiga noturna que faça espantar o temor quando se ouve a coruja rasgando mortalha nos escondidos dos arredores; não há noite iluminada que não estremeça quando o miado do gato vem acompanhado de um lúgubre padecimento. Tudo fica tão triste quando o mau presságio chega nas asas agourentas da escuridão.
Quem dera que tudo ficasse apenas naquelas velhas estórias, nos mitos de gerações, acerca de mulas sem cabeças, lobisomens, fogo-corredor, seres encantados povoando as matas e tantos outros mistérios que ainda povoam o imaginário matuto. Mas não. O que se tem - e como realidade - são outras aparições de vida e de morte. Desde o urubu debaixo do sol ao pássaro noturno que vem buscar uma alma.
E não é conversa pra boi dormir porque os fatos não deixam mentir. No alto da cumeeira, nos escondidos do telhado, nos tocos escuros dos paus, por entre as sombras dos arvoredos e tufos de mataria, sejam ocultos ou não, lá estarão os bichos que atazanam, amedrontam, arrepiam os sertanejos. E fazem muito pior com os indefesos e fraquejantes animais que se tornam vítimas das intempéries ou de seus bicos afiados.
A verdade é que é um misto de crendice e inventividade que vai se confluindo em inegável realidade. Mesmo que a crendice não se fundamente, a mesma continua existindo como verdade pelo simples fato da crença. E assim acontece com os bichos agourentos, os animais carnicentos, com todos aqueles cujos gestos ou atitudes tornam a realidade sertaneja mais assombrosa e apavorante.
Por ali, naquele mundão de tanta gente de fé, ainda se acredita nos maus prenúncios trazidos pelos pios, uivos ou sons agourentos; ainda se vê com temerosidade o gato preto cruzando a estrada, o pássaro preto pousando na janela, o estranho miado do gato com seu pelo eriçado; o urubu soturno que parece querer fazer moradia em cima do pé de pau mais adiante. Para quem não entra nem sai de casa com o pé esquerdo, avistar o bicho agourento é ter a certeza que o pior vai acontecer.
Cavalo que relincha na estrada e não quer seguir adiante é porque avista coisa ruim; cachorro de latido constante é porque está vendo coisa estranha, alma penada, coisa do outro mundo; nenhuma esperança boa chega parecendo um vara-pau; o gemido triste vindo da mata é sinal que alguma coisa ruim logo irá acontecer. E logo as mãos se unem em oração, o caboclo se benze dos pés à cabeça, a vela é acesa, e a voz temente não se cansa de dizer: Deus é mais!
Mas nada pior e mais assustador, verdadeiro fim de mundo em muitos lugares do sertão, que o som funesto e aterrador da rasga-mortalha, que é a própria coruja encomendando a vestimenta de defunto; o silêncio sangrento do morcego pendurado no alto da casa; o anum anunciando a morte; a maldição trazida pelo negrume do urubu; o gavião amaldiçoando o fraquejante. Não só noturnamente, pois pelo dia os acontecimentos funestos se espalham por todo canto.
Verdade é que nada continua o mesmo se de repente surgir o ruído medonho de uma ave aziaga. E se a própria aparecer então, será um verdadeiro fim de mundo, pois a morte certa ronda a paz do lugar. Uma velha senhora chorou por três dias e três noites por causa de uma coruja que resolveu pousar num tronco de pau diante de sua casa. Toda vez que botava o olho na janela, avistava a agourenta com aquele olhar fixo naquela direção. Eis que a velha acabou morrendo de tristeza antes de ver que a danada já tinha voado pra outro lugar.
Mas nem só de agouros e assombrações ressente-se o sertanejo. Também fica sem acreditar com o que enxerga pelos descampados e mataria ao redor, por todo lugar e principalmente em épocas de estiagens inclementes. O tempo assim, triste pela própria feição da natureza, é o mais propício para que os bichos maldosos e carnicentos se aproveitem da fraqueza de outros bichos.
O carcará não pode ver um cabrito magricela que logo faz um rasante em direção aos olhos. Fura logo os dois, deixa o bichinho sangrando na escuridão da morte. E a cegueira o faz prostrar para a chegada dos carnicentos. Os urubus, antes mesmo da fetidez do corpo morto, parecem adivinhar o sinistro. Começam a rondar pelo ar e não demoram muito para estar por cima do pobre animal com sua putrefata gulodice.
Mas não estará só, pois por ali também o gavião e outros aproveitadores de carne morta. Se já estivesse enterrada então era prato cheio para o tatu e o peba, que fuçam distâncias de terra só pelo prazer de saborear defuntos. Dizem que suas couraças são guaridas diurnas para os que não alcançaram a salvação. E saem à noite para as assombrações.
Não acredito. Mas Deus me livre de não acreditar.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Anônimo disse...

Pois bem Professor RANGEL: Há 30 anos passados, antes de ingressar na Secretaria da Fazenda, eu era Comissário de Menores em Salvador. E, na função de Comissário, o Juiz me designava para proferir palestras sobre drogas entorpecentes nas escolas que tinham parcerias para esta finalidade, com o Juizado, além de escrever matérias nos jornais da Capital e de duas Cidades do nosso interior baiano. Escrevia artigos, mas nunca conseguia escrever crônicas, por achar que algo apenas imaginário, não seria nem lido. Agora, três décadas após -, com a sua habilidade no enredo das suas crônicas, estou aprendendo a gostar desse gênero literário, embora, tempo não tenho para fazer o mesmo, mas para lê-las concentradamente com toda atenção.
Esta crônica, por exemplo, embora tudo tenha origem no imaginário, principalmente dos camponeses - logo que nas grandes cidades poucas crendices aconteçam -, nos nossos sertões ainda continuam, especialmente o rasga-mortalhas.
Antonio José de Oliveira - Serrinha-Ba.