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terça-feira, 19 de abril de 2011

CADERNO DE POESIA (Crônica)

CADERNO DE POESIA

Rangel Alves da Costa*


Por todo lugar o menino escrevia versos, na folha seca, na madeira da mesa, no tronco da árvore, na areia, no vapor d’água na janela, no ar, no vento, no pensamento. Mas nunca escrevia no caderno.
O pai sempre lendo aquilo tudo sem dizer nada, até que um dia chamou o filho e perguntou se ele lembrava de que eram os versos que ia declamar. E recitou estrofes de ostra e vento. O menino disse apenas que lembrava por alto, que já tinha escrito algo parecido.
O pai levantou a toalha da mesa e mandou que ele lesse o que estava escrito ali. E depois perguntou se aquela era sua letra. Terminou dando um abraço no filho e dizendo que estava muito feliz por ter um filho poeta, mas que ficaria mais bonito se ele escrevesse suas inspirações num caderninho.
A mãe começou a copiar todos os versos que encontrava espalhados pela casa, nos arredores e onde sonhasse que poderia encontrá-los. Muitos dos escritos continham apenas quatro ou cinco linhas, duas ou três estrofes, palavras bonitas em construção. Mas não importava, e ela ia copiando cada achado em folha própria.
Um dia ela comprou um caderno bonito, com folhas secas de outono na capa e no meio escrito “Meu Caderno de Poesia”. Achou maravilhoso o caderno e pensou que o filho gostaria muito de ter um deste para escrever ali o que quisesse, de modo que os seus versos não ficassem espalhados pela casa, voando no vento, jogados em qualquer canto.
Sabia que ele estava acostumado a escrever tudo solto, sem organização, por aí. Apenas escrevia e deixava lá. Muitas vezes deixava esquecido um poema faltando apenas uma rima, outras vezes voltava para dizer que a solidão, em vão, não lhe tomou o coração.
Por isso mesmo não quis impor o caderno, não quis obrigá-lo a escrever o que quisesse naquelas folhas. Assim, deixou o caderno num local bem visível, onde ele gostava sempre de estar, de modo a despertar o encontro, a curiosidade, o desejo, o uso, a escrita.
Contudo, a beleza do caderno e sua destinação pareceu não despertar qualquer curiosidade no menino. Uma única vez apenas olhou, pegou, folheou e depois colocou no mesmo lugar sem dizer uma palavra sequer. E continuou escrevendo poesias por aí, em qualquer lugar, como sempre gostava de fazer.
O pai e a mãe sentaram para discutir o assunto e chegaram à conclusão que talvez ela reescrevendo as poesias copiadas do outro caderno naquele caderno novo, talvez ele achasse bonitas as palavras escritas cuidadosamente, os versos atenciosamente dispostos em suas linhas, a beleza das poesias acabadas ou inacabadas, e resolvesse gostar daquele caderno ou até mesmo pedir outro em branco.
A mãe copiou tudinho e colocou o caderno no mesmo lugar, só que dessa vez aberto, bem onde estava a poesia que ela mais gostava: Ser manhã ou noite, nessa vida de açoite, melhor procurar ser lua e sol, pra brincar no arrebol e cantar no meio da rua. Ser vida e poesia, nessa vida de agonia...
Então ele chegou, avistou o caderno e os versos, se aproximou e perguntou à mãe se ela também escrevia poesia. Ela respondeu que não, que gostava muito de belos poemas, mas aqueles que estavam ali escritos eram dele. E pediu que os lesse para ver se recordava.
Cuidadosamente ele passou página por página do caderno e depois disse que não sabia que escrevia tão bem. Porém acrescentou que a sua melhor poesia não estava escrita ali. Então a mãe perguntou onde estava.
E ele disse que o amor estava no seu pensamento, a vida estava escrita numa bola de sopro pelo ar, a paz estava voando numa folha ao vento, a esperança no tronco da árvore da praça e o amanhã por baixo do seu travesseiro.
E acrescentou que só gostava de escrever poesia assim. Tão vivas e espalhadas por todo lugar, que jamais poderiam morrer sufocadas dentro de um caderno.





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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