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quarta-feira, 27 de abril de 2011

EU, MEU AVÔ E MEU PAI (Crônica)

EU, MEU AVÔ E MEU PAI

Rangel Alves da Costa*


Minha descendência tem cheiro de mato, é enraizada na mais árida terra sertaneja, tem suor que corre nas veias como o sangue desbravador da própria vida. Sou sertanejo, da mesma matriz matuta do meu pai e do meu avô.
Meu avô, um bicho do mato, coração selvagem numa alma sem igual. Meu pai, domado pelo destino, pensou ter crescido e feito homem na criança ranzinza que ainda é. E eu, o que sou, como sou?
Meu avô não sabia ler nem escrever, mas era doutor em tudo, principalmente na arte da sobrevivência no sertão. Meu pai cresceu autodidata e depois aprendeu demais, não nas letras que se cultiva e não se aprende, mas na arte de pesquisar e descrever a própria vida. E eu, o que sei, o que faço?
Meu avô era homem de poucas palavras e de largos gestos, de poucos dizeres e muito exigir, daquele tipo que nasceu para liderar como espelho do que é e pelo olhar do que quer. Meu pai fala demais e impensadamente, eis o maior erro de quem já foi liderança e hoje apenas sente a falta de comandar, daquele tipo que tudo está ruim porque não pode tornar do seu jeito. E eu, como faço, como sou?
Meu avô trançava o vento e moldava as nuvens para sobreviver, plantava uma semente em qualquer lugar e fazia de qualquer coisa em qualquer lugar uma oportunidade para tentar garantir o pão da família e ter seu chapéu de panamá e fumo para o seu antigo cachimbo. Meu pai já encontrou régua e compasso, a vida mais fácil de ser vivida, mas nem por isso menos difícil de se conquistar o espaço para sobreviver. E eu, o que faço, o que sei fazer?
Meu avô não era violeiro nem cantador, não exercitava o cordel nem caminhava pelas estradas repentistas, mas não vivia sem cultivar no seu gosto sertanejo o melhor que a cultura matuta podia oferecer, nos discos de cantadores de repente e trovadores de qualquer lua sertaneja. Meu pai seguiu nesse mesmo passo, trouxe esse gosto pelo popular como devoção de filho do sertão, mas ampliou isso tudo, enveredando pelo prazer em ouvir a autêntica viola caipira e os causos dessas caatingas sangrentas. E eu, como sou, do que gosto?
Meu avô lidou com tudo, foi qualquer trabalhador, teve bodega e bar, armazém e depósito de fardos e mais fardos de algodão e sacos e mais sacos de milho e feijão, teve pensão e caminhonete de frete, teve caminhão de transporte, teve uma fazendinha e uma rede de estender na varanda. Meu pai teve muito mais e muito menos. Para não dizer o que ele teve e o que tem, basta lembrar o poema de Drummond dizendo que hoje só resta uma fotografia na parede, e como doi. E eu, o que tive, o que tenho?
Meu avô era homem calmo demais, ouvindo atentamente tudo e chegado a pacificador nas mais difíceis situações, mas tudo isso apenas para esconder o sangue quente que queria saltar das veias, a voz assustadora que dizia tudo de uma vez só, a arrogância quando de outro modo não poderia ser diferente. Meu pai é o galho que se quebra em pessoa, pois está tranqüilo e sereno e de repente já é espeto querendo ferir a todos, de forma inusitada e até impensada. E eu, o que sou, como sou?
Meu avô era sertão, sertanejo, exemplo de tudo que por aquelas terras já brotou, por isso tão autêntico como o seu vasto e embranquecido bigode e seu chinelo de dedo; simplicidade que gostava de ficar de cócoras com uma varinha riscando o chão. Meu pai é outro sertão, é a terra que ele descreve, as histórias que ele conta, os versos e as melodias que compõe. É o sertanejo que está nos seus livros sobre o cangaço e Lampião, no amor pela viola de Tonico e Tinoco, no programa da Rádio Xingó, nas suas músicas gravadas por duplas famosas. E eu, o que sou, o que faço?
Meu avô era Ermerindo. Meu pai é Alcino. Tudo dos Alves e dos Costa. E eu sou Rangel. E tudo o que sou, como sou, o que faço, o que sei e tudo o mais o que há duvidar nem perguntem a mim. Sou tudo e todo meu avô e meu pai. O resto não passa de um humilde sertanejo que vive reabrindo os caminhos que o levarão de retorno a seu Poço Redondo.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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