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terça-feira, 26 de abril de 2011

DESCONHECIDOS - 95 (Conto)

DESCONHECIDOS – 95

Rangel Alves da Costa*


Ainda na beira do rio, os rapazinhos se deram conta do surgimento de outro problema, vez que não poderiam, naquelas condições, voltar para o outro lado, reencontrar Dona Doranice, que nem sonhava com o que estava se passando. E agora, mais do que tudo, corria sério perigo.
E realmente corria grande risco, e não somente ela como também as acompanhantes que ainda continuavam ao seu lado. Verdade é que mesmo antes dessa desfeita ocorrida na vila dos pescadores e perpetrada em parte também pelos considerados netos da viúva, o coronel e sua companheira já estavam procurando o melhor meio de se livrar de todos.
Sofie já havia alertado o coronel sobre as estranhezas de Carlinhos, suas atitudes e suas palavras reveladoras demais. O menino parecia saber de tudo e não procurava esconder nada, até lhe afrontando, tanto pelo que dizia como pelo jeito que lhe olhava. Era perspicaz demais o garoto, afoito demais, extremamente perigoso. Com aquela história de que alguém invisível lhe fazia revelações, podia abrir a boca e descobrir tudo a qualquer instante. Foi o que a ex-madame atiçou no ouvido do coronel, pedindo a tomada de providências drásticas.
De início, revelou o próprio coronel, até que se sentia bem ao lado dos visitantes, da viúva e dos meninos. Mas aos poucos passaram a ter olhos demais, ouvidos demais, se tornando grande ameaça para os seus planos a partir do aparecimento da ex-prostituta. E agora o casal se via com problemas para eliminar de vez a prova viva de tudo, que era a própria Soniele, precisamente por causa daqueles dois.
Ora, sem falar nas proezas e astúcias de Carlinhos, amedrontando a todo instante a companheira do coronel com suas pequenas doses de acusações, Yula chegou a confrontar o próprio senhor dono do mundo ali na beirada do rio. Então todos, indistintamente, teriam que pagar. Primeiro a velha e suas amigas, que já estavam ao alcance, e depois os meninos e todos aqueles que os haviam confrontado na vila dos pescadores.
Nesse intuito, de modo ardiloso e frio, o casal desceu do barco e se dirigiu tranquilamente até a casa. Ele chamou o capanga de lado, deu-lhe uns dois sustos, disse uns dois palavrões e depois, apontando lá pras bandas da igrejinha e do outro lado do rio, ordenou que fosse fazer alguma coisa com urgência.
Dona Doranice estava do lado de fora juntamente com as duas assessoras, apreciando os encantos da manhã. Foram cumprimentadas cordialmente pelos dois e em seguida a viúva perguntou o motivo daquelas pessoas reunidas ali no outro lado há instantes atrás. Mesmo de longe dava para enxergar aqueles vultos ora indo ora vindo e depois se agrupando.
“A senhora enxergou daqui? Pois é, eu e Sofie estávamos visitando os moradores do outro lado, um povo muito pacato e muito bom, de coração imenso e que só pensa em ajudar o próximo. Encontramos os dois rapazinhos lá também, já amigos de todos pelo visto. A jornalista Cristina lhe mandou um abraço e disse que ainda hoje vem aqui lhe visitar. E vem mesmo hoje porque mais tarde vai ter a inauguração da igrejinha, celebrada a missa e amanhã uma bela churrascada pra todo mundo. Hoje não, porque hoje vai ser apenas para a celebração religiosa com uma missa bem bonita, celebrada como ninguém viu antes, cheia de devoção e beleza...”. Dizia o coronel, quando foi interrompida pela viúva:
“Mas vai ser hoje mesmo a inauguração da nossa igrejinha coronel, que coisa maravilhosa. Vai ser quantas horas?”. “Assim que o padre estiver pronto e os pescadores e os outros convidados chegarem. Já convidei todos do outro lado e logo mais estarão aqui para a grande festa religiosa. Mas adianto que vai ser lá pela tardinha, quando o sol estiver esfriando mais, acho que o momento ideal para a grande celebração”.
Era o que dizia e confirmava o coronel, entre a mentira e o cinismo, ao mesmo tempo sorrindo e chorando por dentro. Verdade é que já estava perdendo totalmente o controle sobre si mesmo, sentia isso. Sabia que o homem tomado pelo ódio, pelo desejo insaciável de vingança, possuído pela angústia em não querer aceitar os próprios erros, vai se destruindo aos poucos.
E principalmente ele que nem um resto completo de homem era mais, vez que tinha sempre que doar parte da força que lhe restava para o pássaro preto continuar existindo. Por isso mesmo havia também ordenado que homens de sua confiança fossem escondidos até o outro lado e trouxessem à força aquela que parecia conhecer parte da maldição da ave sinistra. Quem sabe se ela, pescadora conhecedora de muitos mistérios, não reverte essa situação? Perguntava-se.
Mas Pureza já sabia que isso ia acontecer. Assim que o coronel e a esposa saíram dali prometendo vingança, não durou muito e ela foi conversar com seus encantados, remexer no seu mundo de magia e enfeitiçamento, buscar orientação das entidades misteriosas e sobrenaturais. Ela era mulher de rio e floresta, dos mistérios das águas e das noites, das coisas da terra e do além. Era quase uma feiticeira, uma bruxa. Mas era muito mais...
Pegou seus misteriosos instrumentos e outros objetos de grito e canto e se dirigiu pra dentro das matas, lá perto de um pequeno riacho que corria escondido feito cobra embaixo da mataria. E os quatro elementos se juntaram na bacia que virou fogueira, que se transformou em pó e depois ventania, redemoinho medonho diante do olhar de magia. E então logo o pássaro preto pousou ao lado, manso feito um pássaro qualquer. E então o pássaro foi dominado, suas entranhas malvadas invadidas pela magia, seu passo e seu voo, sua sede e sua sanha agora no querer de Pureza, da Grande Senhora dos Encantados. E o pássaro adormeceu de olhos abertos, voou de olhos fechados, tudo havia se transformado. Sua força malvada não dependia mais do coronel, a sede assassina não vinha mais do terrível, mas tudo dependendo agora do desejo e querer daquela mulher, daquela pescadora e seu anzol de destino. E com isso também o coronel passava a ter uma parte de si dependente do querer dela. O que o pássaro tomava do seu corpo para cometer maldades, agora estava nas mãos daquela misteriosa mulher. O que ela faria agora com tanto poder de vida e de morte? O que faria com o próprio pássaro? O que faria com o coronel?
Sem imaginar nada disso, o senhor da maldade, o coronel apressado por vingança, mandou chamar o padre para dizer que a missa seria celebrada mesmo naquela tarde, e que ele estivesse pronto para a festa das almas.
Contudo, não esperou nem o aposentado sacerdote chegar, deixando-lhe apenas o recado para que estivesse em prontidão. Saiu para as beiradas, circulando pelos cantos para mandar que fizessem isso ou aquilo, e cada ordem vinha acompanhada de gestos apontando para a montanha da igreja e para a vila, como se estivesse apontando o que e como os capangas que iam chegando deveriam fazer.
E estava mesmo. Pois não duraria muito para que os homens saíssem às escondidas para colocar em prática as estratégias do coronel. E estas consistiam em trazer à força todos os moradores e outras pessoas que estivessem na vila dos pescadores e levar, também a força, Dona Doranice e suas acompanhantes para dentro da igrejinha.
Até a missa todos deveriam estar prisioneiros do coronel e Sofie lá em cima da montanha, dentro da igreja. Depois da celebração começaria o juízo final.


continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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