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segunda-feira, 11 de abril de 2011

DESCONHECIDOS - 80 (Conto)

DESCONHECIDOS – 80

Rangel Alves da Costa*


Cristina se encheu de preocupação com a reação do coronel frente às palavras do profeta. O homem forte, aparentemente sadio, quase desaba ao ouvir umas poucas palavras. O mais estranho é que ele não havia esboçado qualquer contestação verbal diante do que ouviu. Apenas passou a olhar para trás como se quisesse enxergar alguma coisa que não era o maluco, como pensavam ali.
“Mas coronel, o senhor não está bem. Por favor, diga o que está sentindo. Vamos até a casa de Pureza tomar um copo de água, vamos”, dizia a jornalista. “Mas ora, foi apenas uma indisposição e não tem nada a ver com que aquele esfarrapado disse não. Talvez tivesse sido porque olhei pra ele e lembrei de um rapazinho, que todo mundo dizia que era doido também, e que vivia por essas terras dando um trabalho danado a gente. Jogava o povo contra os ricos, dizia que ou acabavam com a gente ou gente ia acabar com eles, fazia um fuzuê danado. Coronel Argemiro botou uns cabras no seu encalço porque ele andou falando uns malfeitos do coronel e que ele pensava que ninguém mais sabia. Desde aqueles tempos já conversava essas besteiras. Até acho que é o mesmo danado, ainda que o tempo tenha quase que esbagaçado com o infeliz”.
Certificando-se repetidamente que estava bem, resolveram prosseguir na caminhada, mas de vez em quando o coronel parava e ficava olhando pra trás, com um olhar apreensivo, talvez cheio de dúvidas. Cristina se comprometeu a convidar o restante do pessoal e então ele mandou que viesse a embarcação para ir para o outro lado. Mas a jornalista teria de acompanhá-lo para conhecer as construções, e disso não abria mão.
Embarcaram e quando já estavam no meio do rio ela avistou João recolhendo suas redes e gritou pedindo que o mesmo avisasse a Dona Pureza que ela não se preocupasse que tinha ido visitar as obras do coronel. E disse ainda que se ele pudesse, dali a umas duas horas, fosse até o outro lado que ela retornaria no seu barco.
Tudo acertado, mas com as críticas do coronel dizendo que não precisava se preocupar com o seu retorno, pois mandaria alguém trazê-la quando desejasse. Contornado o impasse, vez que ela precisava mesmo conversar com João e a curta viagem daria essa oportunidade, logo desceram bem defronte a casa de veraneio.
Diante da riqueza do coronel, que bem poderia exagerar e mandar construir ali uma verdadeira mansão, a casa era muito simples mesmo, sem suntuosidade alguma, a não ser pelo aspecto de coisa nova, cheirando a tinta e verniz, que sempre deixa tudo bonito e aprazível. Simples, porém confortável e grande o suficiente para muitas pessoas. Cercada de telheiros pelos quatro lados, com portas largas e amplos espaços, não deixava de ser um luxo diante da realidade dos outros habitantes por toda a margem, de cima a baixo do rio.
Pelo que foi percebido, a casa já estava totalmente pronta para receber Dona Sofie e seus convidados. Ali era realmente um recanto incomparável para descansos, conversas e passeios. Dona Doranice e os meninos também se sentiriam muito bem naquele ambiente e diante daquela maravilhosa paisagem. Do outro lado, as casinhas dos pescadores, a vida dura no seu dia a dia, contrastando com os prazeres de fins de semana daqueles que não durariam muito para chegar.
Contudo, ao percorrer os ambientes da casa, a jornalista achou muito estranho um pássaro escuro e de bico grande, de olhos vermelhos como fogo em brasa, entrando pelas janelas, dando ruidosos voos, para retornar em seguida. Outro fato de causar estranheza foram sons muito assustadores que de vez em quando eram ouvidos, como se surgissem debaixo do chão e de dentro das paredes.
Não comentou nada com o coronel, mas ficou imaginando o porquê daquele pássaro com os seus rasantes ameaçadores e os ruídos esquisitos, parecendo que a qualquer instante alguma coisa romperia as paredes ou o piso da casa. Quando o coronel lhe trouxe um cálice de licor, o pássaro surgiu do nada e derrubou da mão a bebida. O vidro se estilhaçou pelo chão, mas enquanto ela foi buscar uma vassoura para limpar o local, tudo havia desaparecido misteriosamente. O chão parecia que nunca havia tido sujeira.
Esperou que o coronel percebesse alguma coisa e fizesse comentários, mas como o mesmo silenciou sobre o ocorrido, talvez até porque não tinha visto, ela achou melhor não fazer render aquele assunto. Mas já era de assustar, já era de fazer estremecer qualquer um que temesse os mistérios do desconhecido.
Juntando uma coisa com outra, sentia que algo muito errado acontecia por ali. E fosse o que fosse poderia ocasionar acontecimentos muito piores depois. E ficou pensando nesses fatos no contexto geral dos mistérios daquela parte do Rio São Pedrito, que se confirmavam cada vez mais.
Ao subir pelas escadarias de pedra que davam na igrejinha, sentia uma sensação ruim, uma força estranha e negativa que se espalhava pelo ambiente. A porta principal estava fechada e quando foi aberta para que entrasse, tomou enorme susto com o pássaro que estava lá dentro e avançou violentamente para a saída, com aquele bico esquisito e os olhos estranhamente vermelhos e faiscantes.
Estava sozinha. O coronel andava pelos arredores, dando ordens para ficar tudo como desejava. O interior da capela parecia um brinco de tanta beleza. Cada detalhe singelamente trabalhado, arquitetonicamente construído, numa perfeição que transmitia um aparente bem-estar, principalmente quando todas as portas foram abertas e o sol foi entrando pelas laterais e até por uma parte do teto trabalhado com vitrais.
Com o sol batendo, as cores do vitral se espalhavam pelo interior e permitia a formação de muitas cores. Contudo, em meio a esse colorido sobressaía-se precisamente a formação de uma estranha figura, em tons escurecidos, que ia se estendendo até o altar. E olhando da porta via-se nitidamente que aquela era a figura de um pássaro preto e de olhos vermelhos.
Quando o coronel apareceu, Cristina chamou-o até a porta e mostrou a descoberta. Ele não teve dúvidas de que a figura se prostrava precisamente no lugar do padre, mas concluiu que aquilo não passava de um efeito ocasionado pela luz do sol no vitral lá por cima.
E por que essas asas querendo avançar e esses olhos terríveis? Indagava-se silenciosamente Cristina, sem procurar contradizer a opinião do homem. Mas que algo estava muito errado ali não tinha dúvidas, ademais o próprio pássaro estava dentro da igreja quando ela abriu a porta.
Talvez estivesse fazendo conclusões apressadas, mas pelo que tinha percebido algo realmente muito estranho acontecia naquelas duas construções. E talvez também tudo aquilo desaparecesse com o funcionamento da igreja e a presença constante de pessoas na casa. Era isso que se esperava nas duas obras que estavam realmente belas.
Não ficou mais tempo com o coronel porque João havia chegado com o seu barquinho e a esperava na beira do rio. As despedidas foram rápidas e o pescador segurou na mão da moça para ajudá-la a subir no barco e a fustigar a ira ciumenta da falecida.


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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