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sexta-feira, 22 de abril de 2011

DESCONHECIDOS - 91 (Conto)

DESCONHECIDOS – 91

Rangel Alves da Costa*


Verdade é que diante de tanta insensatez, tanta maluquice, tantas ameaças e tantas feridas verbais sem fundamento, Dona Doranice levantou decidida em direção à insana e ébria Sofie, juntou todas as forças que ainda dispunha, mirou-lhe a cara e desferiu um muro tão forte que a companheira do coronel caiu sem dizer palavra, como uma porta que abruptamente despenca e fica estatelada no chão.
As duas assessoras que ainda restavam gritaram desesperadas dizendo que a patroa acabara de cometer um homicídio, acabara de dar cabo à vida da infame conversadeira. Sem arroubos e desesperos, após se contentar com a demonstração da força que tinha e com o acerto bem onde queria, que era do lado do rosto, a viúva simplesmente disse, feliz e exultante:
“Que morreu que nada. Essa aí vai dormir até a cachaça passar e amanhã vai acordar não lembrando de nada. Isso é bem típico de gente safada, que bebe e diz o que quer e depois finge que não lembra de nada”. E no instante seguinte acrescentou: “Arrumem as malas que amanhã, que chova de cair canivete ou faça sol de rachar, a gente vai embora desse lugar maldito. Viemos em paz, em busca de sossego, mas desde o primeiro minuto que chegamos tudo está desandado, só veio aborrecimento. Com missa ou sem missa, fiz a minha parte e a igrejinha está construída. Amanhã farei uma visita e depois vamos embora daqui. Que Deus me perdoe, mas estou começando a acreditar na maldição desse lugar”.
Avistando a mulher estirada no chão, Yula e Carlinhos já desceram do barco correndo. “Mas o que aconteceu com Dona Sofie?”, perguntou o neto da Condessa. “Cachaça no rabo, só isso”, respondeu a viúva. “Mas ela está tão estranha, com uma roupa tão diferente, uma pintura tão forte, vocês têm certeza que ela não está morta?”, insistiu o rapazinho. “Antes tivesse, antes tivesse. E vocês levem a desgraçada lá pra dentro e despejem em cima da cama do quarto dela.”, completou a viúva.
“Mas por que tudo isso e tanta raiva, vovó?”. E foi a primeira vez que Carlinhos falou com a viúva chamando-a de vovó. A resposta foi imediata no coração desta. Encaminhou-se para o menino e apertou-lhe carinhosamente, beijando-lhe nos cabelos e falando: “Oh, Carlinhos você não sabe o quanto eu precisava ouvir você me chamando assim. Somente essas palavras para dar um pouco de felicidade diante das besteiras e das ameaças que essa mulher enlouquecida fez”. E fez um relato completo para os dois.
Em seguida, Carlinhos pediu que todos ali ouvissem uma coisa que tinha a dizer sobre aqueles últimos acontecimentos, e começou a falar:
“Tanto essa mulher como o seu companheiro, o coronel, são pessoas do mal, são pessoas vingativas que estão usando a gente, tanto nós que estamos aqui como as pessoas do lado de lá, que são os pescadores, incluindo a jornalista Cristina, para se aproximarem da mocinha Soniele. É que Soniele guarda um segredo que aflige profundamente tanto o coronel como Sofie, e é coisa que certamente envolve até gente falecida, tem a ver com muita mentira e vontade desesperada de dar um fim àquela que sabe de tudo. O problema é que ela possui um significado grande demais para os dois. E só quem sabe disso é aquele homem que aparece e que todos chamam de doido, que na verdade é meio enlouquecido, mas nem tanto assim, e eu. E eu sei por que o falecido esposo de vovó Doranice me conta tudinho. E foi ele quem me disse que já estava na hora de tratar a senhora como vovó, o que eu já não tinha feito por vergonha...”.
“Mas meu filho, que coisa mais esquisita, que história mais medonha e aterrorizante. E esse é mais um motivo que a gente tem que ir embora daqui amanhã, e de qualquer jeito...”. Mas Dona Doranice foi entrecortada por um “Não!!!” dito conjuntamente, de forma até desesperada por Yula e Carlinhos. O primeiro pensando em Carol, e o segundo porque precisava conhecer o segredo de Soniele e ajudá-la a resolver seus problemas. Mas foi Carlinhos que procurou explicar porque não poderiam partir no dia seguinte:
“Vovó, já que estamos aqui vamos tentar ajudar a mocinha. Sem a minha presença dizendo o que deve fazer ela fica muito desprotegida e vai ser alvo fácil desses dois. Só Deus sabe o que eles farão com ela assim que a encontrarem de corpo aberto, desamparada. Temos que ficar até que esses dois sejam desmascarados e, se for o caso, pagar pelos erros que cometeram. Yula já tem outros motivos para querer ficar aqui mais uns dias, mas não vou dizer não. Estamos certos assim vovó?”.
Com o coração em manteiga, a viúva procurou apenas abraçar o menino novamente. E virando-se para Yula perguntou o que ele tinha arrumado pra ter ficado tão corado e disposto. “Uma sereia vó, encontrei uma sereia”. E esse outro vó quase foi demais para a viúva, que foi conduzida pelo menino até a beira do rio, para esquecer aborrecimentos, se banhar com a luz do luar imenso e dourado.
Quando Sofie foi levada para o quarto, permanecia realmente com aspecto de morto, sem mexer um só dedo. Porém tudo mentira, tudo engodo, enganação deslavada. Ainda deitada no chão da varanda, havia ouvido tudo, e nos mínimos detalhes, do que tinha sido conversado. Enquanto era carregada planejava esperar o coronel chegar e relatar o ocorrido e os planos daquelas pessoas, principalmente daquele menino. Por isso mesmo é que tinham que agir o mais rápido possível.
Na beira do rio, comentando sobre o profundo silêncio do rio, a viúva dizia ao menino que quando criança ouvia dizer que nunca era bom o as águas do rio ficar assim desse jeito, calmas demais, silenciosas demais, pois era sinal que a qualquer momento poderia se revoltar e acontecer o pior.
Do seu modo simples de explicar as coisas, Carlinhos disse que tudo ali, a natureza inteira, certamente estaria diferente. Nada mudava significativamente aos olhos porque tudo na natureza ocorre sem dar satisfação ao homem, sem avisar que nas suas entranhas estão guardadas surpresas boas e ruins.
E deu um exemplo dizendo que bastava ver que por ali parecia não haver mais passarinhos, pois fora um preto e ameaçador outro não voava pelas redondezas. E disse ainda que talvez aquele pássaro preto fosse o culpado pelo desaparecimento dos outros, pelo seu modo estranho e assustador. E de repente, em meio ao tempo escurecido, a sinistra ave apareceu num rasante e foi preciso que Carlinhos se abaixasse rapidamente. O pássaro procurava os seus olhos.
Decidiram sair dali imediatamente e retornaram a casa, Carlinhos olhando pra trás e vendo aquele ponto mais escurecido cortando a noite de um lado para o outro, como se estivesse faminto, caçando, procurando suas vítimas. Passou por cima da pedra grande no mesmo instante que João pescador ia dar o primeiro beijo em Cristina.
A jornalista se assustou com o voo tão próximo e abraçou ainda mais aquele amor que jamais imaginara encontrar um dia. Amor molhado, suado, nativo; amor diferente, bem amor mesmo, sem palavras bonitas para dizer senão pronunciá-las no olhar, no toque, no abraço. No sexo. A luz da lua seria testemunha de tanta e tão absoluta entrega. E testemunhou a nudez e o apelo, a busca e o encontro. E enquanto gemidos de prazer murmuravam na escuridão, um terrível lamento se levantou das águas lá embaixo. O amor estava vencendo a morte.
Lá pelas três horas da madrugada a canoa com o coronel despontou apressada. O amaldiçoado voltava acompanhado do sacerdote que pôde encontrar. Antes mesmo de descer em terra firme avistou Sofie que vinha apressada em sua direção.


continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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