SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 4 de abril de 2011

DESCONHECIDOS - 73 (Conto)

DESCONHECIDOS – 73

Rangel Alves da Costa*


E diante do espanto de todos, aquele verdadeiro cemitério encimado de uma espécie de balsa foi afundando no exato momento que passava diante daquelas pessoas como que paralisadas. O negro Quelé correu para a beira do rio e começou a jogar pedras num gesto de total desespero, tendo que ser acalmado por João, que também não estava menos desesperado.
“Mas o que foi aquilo mesmo Dona Pureza?”, quase não consegue abrir a boca para perguntar a assustada jornalista. “Nada mais nada menos do que aquilo que lhe falou instantes atrás. O fim de mundo, só isso. Aqui, de uns tempos pra cá todo dia surge alguma coisa pra anunciar o fim de mundo. É o rio que muda de uma hora pra outra, são as água que estão calmas e parecem querer beber todo mundo em seguida, são as muitas aparições avistadas a qualquer hora da noite e também do dia, é o barquinho da morte que agora deu pra passar a qualquer hora do dia. Enfim, minha filha, é um montão de coisa que você agora infelizmente vai ter de ver. E como essa coisa de jornalista que diz que é, acaso saia daqui viva pode escrever pra o povo saber. Mas eu juro que ninguém vai acreditar um tantinho assim. Eu mesma tem vez que penso é que tô ficando meio amalucada. Mas vocês viram, vocês não me deixam mentir...”.
“A moça tome cuidado e evite sair sozinha por essas beiradas. Dona Pureza num falou, mas existe um doido varrido, um espantalho, seja lá o que for, que achou de se arranchar por aqui e vive por aí atrás das moitas, por cima das pedras e dos montes. Até aqui, afora a sua conversa que o mundo vai acabar e vai acontecer isso ou aquilo, nunca fez mal a ninguém não. Mas é preciso ter cuidado com esse tipo de gente desconhecida. Qualquer coisa moro ali naquela taperinha, eu e minha solidão amiga...”.
Foi o que falou João pescador, já com os olhos brilhando de encantamento pela beleza da jornalista. Dentro de si jurava que não sabia quem era mais bonita, se Soniele ou essa moça recém chegada. Soniele era meiga e bonita demais, parecendo uma florzinha do campo que todo mundo tem vontade de pegar, cheirar e trazer sempre na mão. Já essa era também uma flor, mas talvez uma açucena, uma flor mais madura, mais bem definida, com outros perfumes. E tinha ainda a outra mocinha Carol, mas parecia tão ingênua em tudo a bondosa desconhecida.
Ainda nesse pensamento de tanta lindeza e ele naquela solidão de viúvo, quase não ouve quando Cristina perguntou se ele realmente morava sozinho. Mas Pureza tomou-lhe a frente e respondeu: “Esse aí é um cabeça dura menina. Nessa idade e já é viúvo, mas diz que é casado com aquela pedra grande ali adiante. Quem quiser encontrar ele toda tarde basta olhar que ele tá lá em riba namorando com ele. E canta, e conversa sozinho que chega a chorar. Tem horas que me dá pena desse safado. Já disse a ele mais de mil vezes que novo, forte, trabalhador, bonito como ainda é, nem esperava muito tempo pra trazer um rabo de saia pra se entrincheirar mais ele. Mas é cabeça dura o danado, parecendo que quer ficar a vida toda desenterrando a defunta. Aonde ela tiver, a pobrezinha vai até achar uma glória no dia que ele trouxer uma e colocar ali dentro pra espantar a solidão. Mas ele quer assim, então...”.
“Ah, se é viúvo tem razão em pensar na mulher amada que perdeu. Por outro lado, Dona Pureza tem razão ao dizer que tem de pensar também em você. Mas desculpe por falar isso, já que ainda não conheço praticamente nada daqui”. Não se sabe por que, mas João gostou demais de ouvir essas palavras da moça. Estava contente por dentro. Nem lembrava mais da aparição.
Despediram-se assim que a bagagem de Cristina foi colocada dentro da tapera. Lá fora Quelé começou a atiçar o amigo: “Nunca vi você com os olhos assim homem. Foi porque causa da aparição do rio ou dessa aparição bonita que apareceu? É verdade, meu amigo João apaixonado. Se fosse mais tardinha ia tomar uma pra comemorar”.
E João ficou nervoso que só com essa conversa, tentando a todo custo despistar do assunto. “Você devia respeitar a falecida homem. Sou macho de uma mulher só, você sabe disso. E enquanto ela tiver ainda bem viva no meu pensamento juro que num vou precisar de outra pra ficar mais que dia”. Foi o que conseguiu dizer, de cabeça baixa, ainda pensando nos olhos de Cristina.
Naquele dia, principalmente por causa da aparição, a pescadora Pureza não botou o barquinho na água. Ao invés disso ficou sentada do lado de fora colocando pilombetas em sacolinhas plásticas para enviar para o mercado de Mormaço. Mais tarde a canoa que recolhia o pescado ia passar por ali para fazer o recolhimento. Era quando recebia os poucos alimentos que encomendava. Todo mundo fazia e vivia assim por ali. Para ir à cidade só mesmo para resolver assunto muito importante.
Cristina ainda desarrumava suas coisas, tentava organizar um cantinho na tapera para fazer de quarto. Mexia numa coisa e noutra e de vez em quando se via pensando no pescador viúvo, rapaz tão moço e ainda apaixonado pela memória da esposa. Era muito bonito o gesto dele, mas era muito triste e despropositado. Ele tinha mesmo era que arrumar uma namorada, uma companheira ou seja lá o que fosse, mas por ali devia ser muito difícil. Mas ele era tão bonito...
Assim que Pureza terminou o serviço disse que ia ver como estava a doente. Se não tivesse melhorado o jeito era mesmo João ir buscar o médico. E já estava tudo certo pra ir ele fazer isso sem demorar muito, pois até com o dinheiro do pagamento já estava. Cristina logo disse que iria também, também tinha muito interesse em saber qual a evolução da saúde da mocinha. E tinha também outros interesses, principalmente em conhecê-la.
A porta da tapera estava aberta e logo Carol avisou que poderiam entrar. Era dar um passo e já estavam na sala, quarto, cozinha e tudo. E para maravilhamento nos olhos, assim que entraram puderam ver que a enferma estava sentada na esteira em volta de um prato de mingau de farinha.
Eis a bela mocinha, pensou a jornalista num sorriso. E que bela mocinha mesmo, confirmou quando foi apresentada. Mesmo doente não havia perdido a jovialidade e o encanto. E se perguntou ainda como alguém de vida tão difícil tinha conseguido se manter sempre jovem e bela.
Ao passar o olhar sobre o barraco logo enxergou a fotografia. Adiantou-se um pouco mais e reconheceu. Aquele era o filho do coronel, aquele era Gegeu.


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: