SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 3 de abril de 2011

DESCONHECIDOS - 72 (Conto)

DESCONHECIDOS – 72

Rangel Alves da Costa*


“Bom dia pessoal!”, a jornalista deu os cumprimentos, ao que foi correspondida por todos. Sem ter o que dizer com relação à desconhecida, os pescadores e Carol ficaram somente esperando o que a outra ia falar. E foi isto que Cristina fez em seguida:
“Pelo que vejo aqui não tem muitas opções de moradia e as casas que se espalham adiante já devem estar todas ocupadas por vocês mesmos, que devem ser daqui. Mas por acaso uma só dessas casas não estaria desocupada, de modo que eu pudesse alugar por uma temporada? É que sou jornalista, mas estou aqui também como turista, visitando esse lugar maravilhoso e essa paisagem esplendorosa. Hein, por acaso vocês poderiam me informar sobre a possibilidade de alugar uma casinha por aqui?”.
Quelé se adiantou pra dizer que infelizmente a última que tinha ficado desocupada era a do finado Climério, mas que já tinha gente botando coisa lá dentro pra vim morar no lugar. E prosseguiu dizendo que por enquanto estava muito difícil dela se arranchar por ali.
Vendo a tristeza no olhar da jornalista, Dona Pureza perguntou por quanto tempo ela pretendia ficar na região. “Talvez um mês, mais ou menos, não sei ao certo, mas cerca de um mês...”, respondeu a jornalista. “Mas até que a gente dê um jeito nisso mande descer sua mala e se arranjar ali no meu barraquinho por enquanto. Seria muito feio pra gente que uma visitante ficasse ao relento por falta de guarida. Venha, se achegue...”.
Ouviram uma voz fraquinha vindo lá de dentro da tapera. Era Soniele que chamava Carol por algum motivo. Antes de ir atender a amiga, a mocinha pediu licença e disse que ia ver o que a doente estava precisando. “Mas tem gente doente aí, posso dar uma olhadinha? É que eu trouxe alguns remédios comigo, desses mais urgentes e que a gente sempre precisa no dia a dia. Se for o caso de algum servir terei o maior prazer de oferecer ao doente...”.
“Na verdade é uma doentinha, uma mocinha que de ontem pra cá deu pra queimar de febre, diz que sente muita dor de cabeça e deve estar muito fraquinha. Já demos chá de tudo que é mato medicinal, coisa de cura comprovada mesmo, e remédio de farmácia e ainda nada surtiu efeito. Se não apresentar melhora vamo ter de mandar chamar o médico. Como ela tá, tão fraquinha e arriada, num sei nem se ia agüentar viagem nessa malemolência do rio. Certamente ia piorar a sua saúde da pobrezinha. Mas vamos lá, vamos ver Soniele”.
Ao ouvir Dona Pureza citar esse nome Cristina quase desaba. A surpresa pelo nome foi tão grande que a pescadora teve de perguntar se ela estava se sentindo bem. No íntimo, a jornalista pensava ao mesmo tempo um monte de coisas desordenadamente.
Será que é a mesma Soniele que tanto andei procurando? Será a mesma mocinha pela qual o filho do coronel se desesperou? Será que é aquela mocinha que certamente guarda muitos segredos consigo? Não é todo dia que a gente encontra uma Soniele por essas bandas. Uma Maria, Josefa, Antonia, ainda ia, pois corriqueiro se usar por aqui, mas Soniele é muito difícil. Será que é mesmo a Soniele que tanto tenho tentado encontrar? Se ela, ao invés de seguir pra distante, resolveu voltar pra esses arredores, então pode até que seja mesmo a danada. Mas será que é ela mesma que está lá dentro adoentada?
Quando Cristina entrou na tapera, indo logo atrás de Dona Pureza, tremia de aflição e nervosismo. Contudo, o que pôde enxergar foi apenas uma pessoa deitada na esteira e enrolada da cabeça aos pés. Não dava pra ver nem um pouco do cabelo, nem um tantinho assim da face avermelhada pela doença. Carol foi logo dizendo que era melhor deixá-la como estava um pouquinho, pois havia acabado de tomar outro remédio.
Cristina teve uma vontade danada de se abaixar por um instante e levantar um pouco a coberta do rosto da mocinha. Mas não ia adiantar nada. Conhecia Soniele apenas de nome e fama, mas não sabia quase nada sobre o seu aspecto físico, tendo conhecimento apenas que era uma verdadeira flor do agreste de meiguice e formosura. Mas logo voltaria ali, dali há instantes talvez, bastando apenas providenciar a acomodação na casa da pescadora.
Ao se dirigirem para o casebre da pescadora, sendo seguidas por João e Quelé carregando malas, bolsas e pacotes, Cristina foi perguntando quanto deveria pagar pelo tempo que ficasse hospedada. “Mas ora, minha filha, aqui a gente num tem desse costume não. Se chamei você pra se arranchar por lá foi porque num ia deixar ao relento, jogada na beira da praia, ao deus-dará, principalmente quando isso aqui anda esquisito, temeroso demais, acontecendo coisas que a gente nunca esperava...”.
E foi interrompida pela jornalista: “Quais são essas coisas esquisitas que estão acontecendo por aqui, Dona Pureza?”. “Ixi minha filha, só posso explicar depois porque ia uma tarde inteirinha. Adespois a gente conversa um pouquinho sobre isso. Mas voltando ao assunto da estadia, você num vai precisar pagar nadica de nada. Só peço que pense logo em arrumar um lugar melhor pra ficar, pois se a pobreza mora em algum lugar é em minha casa que ela se ajeita. Mas digo pobreza de luxo, vez que riqueza de força e vontade pra trabalhar eu tenho pra dar e vender. E tem outra coisa, que é sobre comida. Isso eu num garanto não, pois sou acostumada a comer do que tiver, que é um peixe, uma piaba, uma pilombeta, uma rapadura com farinha, uma perna de preá assada, até raiz de pau já comi, e, uma vez na vida na outra na morte, um naco de carne com osso, que é o que posso comprar....”.
E as duas começaram a sorrir embaixo de um calor estonteante, de um vento que soprava carregando consigo um fardo de queimores e afadigamentos. Já quase chegando à porta Cristina perguntou se aquela igrejinha lá em cima da serra e a casa mais embaixo eram as obras encomendadas pelo famoso coronel. Com a resposta afirmativa, indagou ainda o que eles achavam daquelas obras num lugar tão calmo e sossegado.
E após passar a mão na testa para afastar o suor, Pureza se virou para o outro lado do rio e disse que sobre a casa não sabia dizer nada não, mas que com relação à igrejinha tinha certeza que ela não havia aparecido ali em vão, que foi o destino que despertou em alguma mente a necessidade de sua construção naquele local. E quem teve essa ideia sabia muito bem que somente as forças divinas e os santos poderiam confrontar as forças do mal que estavam rondando o lugar.
“Mais uma vez a senhora falando sobre forças do mal. Desculpe eu dizer, mas a senhora não está sendo muito negativa, falando muito sobre coisas ruins? Os mais velhos dizem que a palavra repetida começa a atrair...”, falava a jornalista, quando foi interrompida pela pescadora:
“Olha ali, olha ali. É o fim do mundo mesmo, mas o que será aquilo meu Deus?”. E quando Cristina olhou na direção indicada não acreditou no que via. Um cemitério vinha boiando pelo meio do rio, com suas cruzes e lápides, feito uma grande balsa macabra.


continua...






Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: