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sábado, 4 de junho de 2011

CANÇÃO DO SILÊNCIO (Crônica)

CANÇÃO DO SILÊNCIO

                     Rangel Alves da Costa*


A manhã se vestia de festa quando ela abria a janela e cantava a bela canção de sempre.

“E a vida assim, e tão assim pra mim
Amor com começo e fim e tudo em mim
E eu que não sabia que amava tanto
Encontrei um olhar e se fez o canto
Para cantar de amor tanto acalanto
E dizer que a paz e o amor existem
E nos corações desejos que persistem...”

Pena que só cantava essa música. Talvez soubesse outra canção, mil canções, mas por qualquer motivo escolhia sempre essa para cantar. Mas cantava com uma plangência tão profunda, uma maviosidade em cada frase que era impossível não voltar a se encantar com o tão velho canto.
Velhos, jovens e até crianças gostavam de ouvir a moça da janela cantar sua música de sempre. Por volta das seis da manhã, nunca passando vinte minutos disso, ela abria a janela e mesmo sem colocar o rosto pra fora, abria o vozeirão de diva e iniciava sua música, repetindo quantas vezes o momento pedisse.
As outras janelas se abriam, os ouvidos ficavam atentos, pessoas corriam pra perto da casa da moça para ouvi-la no seu canto. Quanto à voz maravilhosa e a melodia em si ninguém discutia, pois eram unânimes em apontar sua perfeição, mas sérias controvérsias existiam com relação à letra.
Sem que a moça soubesse, pessoas se reuniam para discutir se aquela letra era alegre ou triste, era canção de amor ou de dor, se era verdadeiramente um canto ou um lamento cantado. Os mais velhos defendiam que não só a letra como a própria cantora eram tristes, extremamente tristes, pois a canção falava apenas de um amor desejado e não realizado.
E falavam ainda de quanta amargura e melancolia deveria existir na moça cantora, e por isso mesmo ela se martirizava tanto cantando somente aquela canção que lhe machucava o coração abandonado. Quem um dia pudesse ver seu semblante enquanto cantava poderia também observar os seus olhos marejados ou com lágrimas descendo pela face entristecida. Era o que defendiam.
Já outros mais jovens opinavam que a canção era realmente de amor, mas de um amor alegre, retribuído, cheia de encantamento e realização. E a mesma música era cantada sempre porque relembrava uma passagem muito importante na vida, um momento marcante de amor. Por isso mesmo é que talvez ela dançasse sozinha, lentamente como era o canto, se entregando aos pensamentos bons do amor imenso de um dia.
Contudo, se fez uma manhã em que a janela foi aberta no horário de sempre, o caqueiro de planta com flor foi colocado no umbral, mas não houve canto algum, ninguém ouviu um verso sequer daquela bela canção. No dia seguinte também e ainda depois e depois. E todos, evidentemente, sentiam demais a falta daquela música, daquela voz maravilhosa, daquele canto apaixonante.
Com a certeza de que não poderiam viver sem aquela canção da manhã, duas velhas senhoras da vizinhança decidiram, logo cedinho, esperar que a janela fosse aberta e perguntar à moça porque não cantava mais aquela música que todos já estavam acostumados demais a ouvir.
Mas para surpresa ouviram da jovem que há meses ela não cantava mais aquela canção. Aliás, nunca mais havia cantado nada, mas era como se em todas as suas manhãs ficasse ouvindo o eco de sua própria voz com aquela mesma música. Então as duas senhoras perguntaram se ela também havia deixado de ouvir esse eco.
E ela respondeu que sim, mas que dentro de instantes cantaria uma nova canção, mais suave e bela que a outra. Mas como não sabia da letra de outra música ficou silenciosamente imaginando, porém sem lembrar nenhum outro verso. Mas todo mundo ouvia a bela canção do silêncio.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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