SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 18 de junho de 2011

TEMPESTADE - 40 (Conto)

TEMPESTADE – 40

                          Rangel Alves da Costa*


Após o grito Antonieta caiu esparramada no chão, com os olhos arregalados, tremendo feito vara verde, os braços abertos e o caderninho jogado de lado, porém misteriosamente virado pra cima e aberto no local cuja escrita havia causado tanto pavor. O teria lido de tão medonho e apavorante a mulher?
Se a indigitada mulher não voltasse a si por conta própria, não reanimasse com as próprias forças, certamente morreria ali sem que alguém viesse ao seu auxílio. Por causa do barulho da chuva, do vento zunindo feroz e dos tormentosos trovões ninguém ouvia nada dois metros adiante. Ela havia gritado sim, porém seu gesto surtiu mesmo efeito do silêncio que se fazia agora.
Ademais, quem entrasse naquela parte principal da igreja e ainda que caminhasse em direção ao altar, mesmo assim, a não ser tropeçando no corpo caído, dificilmente enxergaria a desmaiada. Tudo era muito escuro e a chama da vela não chegava à parte mais baixa onde ela estava estendida. Por isso, se tivesse morta assim ficaria até o tempo mudar e a claridade chegar novamente por ali.
E mais adiante, no quarto que servia de sacristia, a porta encostada impedia qualquer contato com o altar e a área própria para os fieis. Todas ainda preocupadas demais com o estado cada vez mais febril, entrecortado por alucinações, se encheram de surpresa quando Filó anunciou ter tocado numa garrafa que parecia ser de bebida.
“Traga ela aqui Filó, e com muito cuidado, que quero alumiar para ver de pertinho do que se trata”, disse Minervina. E quando a luz da vela bateu na garrafa clara quase cheia de um líquido branquinho, chegando ao incolor, Socorro disse que não tinha dúvidas que ali ou era água benta ou cachaça, e cachaça da limpa, da boa, da trisca fogo.
“Cachaça não há de ser não Socorro, pois quem já se viu uma garrafa quase cheia desse jeito e logo aqui escondidinha dentro desse velho móvel? Tenho certeza que é água benta, mas se não for essa água divina há de ser água da chuva mesmo, da torneira, guardada aí pra qualquer necessidade do padre Rufalo que...”. Era Custódia fazendo suas constatações, mas antes que calasse Minervina começou a falar novamente:
“Sei já do que se trata”. Abriu a garrafa, aproximou do nariz e sentenciou: “Mas isso é cachaça pura, de alambique de engenho, branquinha e verdadeira como a água que cai lá fora. E pra não ter nenhuma dúvida vou agorinha mesmo tirar a prova dos nove”. Pediu um copo, derramou nele cerca de dose e meia e virou numa bicada só.
Balançou-se toda, quase solta fogo pelas ventas, mas depois passou a língua nos beiços e disse animada: “Da boa, apurada de mais de mês, por isso tão forte que chegar a arrepiar, mas melhor não deve haver na face da terra. E é com essa mesmo que vamos começar a fazer o tratamento no pobrezinho do seminarista Tristão”.
Depois acrescentou: “Quem quiser tomar uma bicadinha aproveite, mas só uma que é pra não faltar depois como o único remédio que a gente tem. E quem quiser se achegue logo que é pra depois a gente pensar no que fazer”.
Nenhuma quis ficar sem experimentar a branquinha do engenho, tendo umas duas que imploraram para repetir a dose, mas sem chance. Então Minervina pediu que opinassem sobre o melhor a ser feito agora. Assim, uma a uma, todas foram dando suas opiniões.
Para Filó o que podiam fazer era derramar um pouco daquela aguardente forte num paninho e depois passá-lo muito vezes nas narinas do doente, de modo que o cheiro forte provocasse uma reação positiva no organismo. Segundo Custódia, alguém tinha que sair lá fora pra procurar algumas ervas medicinais e fazer uma infusão com a cachaça. Seria tiro e queda, confirmou. Mas como nem a própria se predispôs a ir procurar as plantas, então a ideia foi logo abortada.
Socorro achava que tinham que jogar cachaça sobre o corpo do doente de modo que os poros se dilatassem e a enfermidade fosse sendo expulsa desse modo. E disse ainda que doença nunca se deu muito bem com aguardente e que bastava o mal sentir a força da pinga que procuraria sair aos poucos do corpo, como fugindo estivesse daquele forte odor. Contudo, as outras opinaram que isso parecia mais com feitiçaria do que propriamente com uma medicação.
No entender de Rosinha, a única coisa que se podia fazer com a cachaça naquele momento era misturá-la num copo com um pouco de água da chuva, benzer esse líquido, rezar por cima três ave-maria e três pai-nosso e depois fazer com que o adoentado tomasse todo o líquido da cachaça aguada. Como o estômago sempre rejeita aguardente misturada com água, também conhecida como benzida, então ele vomitaria e no vômito sairia toda a doença.
Minervina até gostou da ideia de Rosinha, mas propôs às demais uma solução muito mais inventiva, porém também muito mais perigosa. Segundo ela, pra tudo não ficar nem faltando nem passado, o melhor que teriam a fazer era colocar umas duas doses no copo e virar a bebida goela abaixo do seminarista.
“Mas vai matar ou embebedar o pobrezinho”, gritou Filó, ao que a outra respondeu: “Mas se não morrer garanto que fica bom, ainda que meio grogue. Vamos ver?”.

                                                       continua...




Poeta e cronista
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