VOSSA ESTROPIZIA
Rangel Alves da Costa*
Cum toda cunsideração, seu dotô, poi arrespeito muito sua linhagem, tanto no terno como na famia, mai tenho qui dizer que vosmicê é uma estropizia.
Se é fio de quem era rico demai e morreu me deveno, e o sinhô dotô num quer me pagar, entonce tá mostrado qui vosmicê é uma estropizia.
Tanto brio, tanto ané, caneta dorada no bolso, dinhero aqui e acolá, carrão qui parece o sol de briá, mermo assim vosmicê num passa de uma estropizia. E das braba, poi cunheço jumento caído cum estropizia qui vale muito mai qui o dotô, qui é o sinhô.
Desci de minha carroça de burro bem diante do carrão qui o dotô fez parar pra me chamá. E se pregunta qui lugá é esse entonce é pruque num miricia tá aqui. E se pregunta mai se aqui tem hoté e ristorante é pruque num tá cansado nem cum fome.
Saiba o dotô qui quem tá cum fome pregunta é adonde tem cumida, se tá cum sede pregunta adonde tem água, um pote ou uma moringa, se tá cum sono cochila em quarqué lugar. Hoté, ristorante e o mai qui tenha de mió pá cumer, beber e drumir é um disperdiço num lugar qui só tem pobe.
Mai o sinhô tem dinhero é pá essas coisa mermo. Vai vê qui só come do mió mai nem sabe quanto custa um pedaço de carne seca, um quilo de feijão, outro de farinha. Num sei nem pruque gente cuma o sinhô come tanto se num vai nem numa feira ou num mercado.
Se fosse cumia mió, poi o que o dotô come nem se compara cum cumida verdadera. Pur um acaso o dotô sabe o qui um é sarapaté, uma mistura de bucho cum tripa, uma mocotozada ou um mondongo de porco?
Certeza qui não, mai num sei nem pruque tô falano nisso. O dotô me preguntou e vou dizê. Pa quem tem dinhero tem hoté e ristorante, e pá one o dotô quer ir adespois tomem vou ensiná, poi já trabaiei lá e vosmicê já sabe bem disso.
Pru siná, dei minha vida e saúde todinha àquela fazenda do coroné Licurgo. Seu pai num era gente ruim não, daí parecê qui a estropizia qui o dotô é num saiu a ele não. Mai de jeito quarqué...
Já disse, já expliquei ao dotô e só vou dizer mai uma veiz: se o sinhô é herdero do finado dono da fazenda adonde eu trabaieie toda vida, entonce o sinhô dotô me deve. E é tum pouco qui me paga num bolso só.
Cuma vosmicê é herdero dele, cuma verdade qui é, quero qui saiba logo uma coisa. O coroné morreu e inté hoje num pagaro meus tempo de seuviço. Se o dotô acha bom ser herdero de lá, saiba qui aquilo cresceu tomem pru força do meu suor.
Se tivesse um poquim mai de piedade de quem tanto tá precisano, logo agaranto qui gastava meno cum hoté e ristorante, tanto brio e tanto luxo, e já tinha pagado o que me deve.
Me deve pouco, mai num me paga. Doi prato do que o dotô come já enchia minha barriga pru muito dia. Uma drumida num hoté já ajudava a comprar meu remedim pru muito tempo. Mai o dotô herdero tarvez só pense em luxá e num pagá a quem deve.
Se eu fosse rico, mai num sou não. Sou pobe de botar naco hoje na boca e aminhã num saber se vou cumer ou não. Mai sou honesto, num devo a ninguém. E num sei pruque, mai rico demai deve muito mai do qui todo mundo. Será qui é pruque num gosta de pagar?
Arrepare qui me alevantei treis da madugada, ante mermo do carijó cantá, pra botá pineu na carroça, ajeitá os burro e pegá caminho pra ir trabaiá. Inté essa hora do dia, com o sol já afruviano, já queimano molera e derrubano pranta e animá, aina assim num tumei nem uma xicra de café nem comi um naco de pão.
Vai chegá o meio dia, na hora do armoço, e vou cumer o que? Trabaieie mai de trinta ano na fazendona do coroné Licurgo, nessa mermo qui o sinhô dotô tomem pregunta cuma tá, e saí de lá cum um pé na frente outro atrais.
Sabe o qui vi dizê adespoi? Vi dizê qui os herdero do homi, do coroné Licurgo, que tudo morava na capitá, uns se formano pra dotô e outros pra politicar, e tudo correno risco de ser ladrão, mai tarde vinha aqui pagar meus direito.
E sabe quano chegou um aqui? Nunquinha da silva, e pru mai qui eu esperasse e mandasse recado, carta e tudo o mai, quasi me ajoelhano nas letra qui mandava os outro escrevê, nunquinha da silva ninhum me mandou uma risposta.
Fiquei cego dum ôio, aleijado duma perna, quase todo isquartejado, e tudo pruque corria no mato pegano gado do coroné. Cada uma novia qui valia milhão, e tudo pá ele mandá dinhero prus herdero estudar, ser dotô, politicar. Mai o difunto num sabe os fio veiaco qui tem, as estropizia que deixou.
Mai me diga uma coisa, se num for dirribá o ané, o qui vosmicê, vossa estropizia, veio fazer aqui e me preguntá sobe cuma vai a fazendona si num quer pagá o que me deve?
E o doutor deputado olhou cinicamente na cara do velho sertanejo e perguntou se o homem queria vender fiado a carroça. Depois mandou que o motorista apertasse o pé no acelerador.
E seguiu adiante, num solavanco que fez o velho rolar pelo chão.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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