SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 5 de junho de 2011

TEMPESTADE - 27 (Conto)

TEMPESTADE – 27

                          Rangel Alves da Costa*


Conhecedores por demais dos afazeres na terra, pastos e vaqueiragens, nas roças e nas fazendas, os dois amigos de repente se viram num aperreio danado precisando arranjar logo outra ocupação. Seus saberes e conhecimentos eram reduzidos, sem entender as letras nem assinar o nome, sem poder dar conta de outra função que não fosse no campo.
Fora do trabalho na terra e nas lides campesinas, eram verdadeiramente desconhecedores de tudo. Não sabiam como levantar uma casa, como preparar uma massa, começar um alicerce, fazer uma caiação, jogar massa numa parede ou mexer com blocos e tijolos, nada. Emprego no comércio também nem pensar, se até os mais jovens estavam desempregados.
A dor maior, tinham certeza, sentiriam depois. Dandão tinha esposa e a filhinha Manuela, a Manu, pra sustentar; Timbé já contava com um problema maior, pois com dois filhos, Maria de Lourdes, a De Lourdes, e Terêncio, o Teté, e a mulher Clotildes, mais conhecida como Culó.
Não podia deixar de ser também um grande problema a situação do filho Teté, que depois de já crescidinho começou a dar sinais de demência, de quem não seria um menino normal. Sem dinheiro nem ter o que fazer, sem poder levar pra médico nem especialista, os pais tiveram que aceitar e se conformar em ter um maluquinho para criar. Praticamente não dava trabalho, mas não deixava de ser uma grande preocupação.  
O dinheirinho que receberam depois de tantos e tantos anos de trabalho certamente não demoraria muito. E o pior é que a seca começou a se alongar de uma forma tão assustadora que já não havia qualquer esperança de retornarem ao que mais sabiam fazer, que era mexer com terra, com gado, com correria por dentro dos matos atrás de boi brabo.
Não demorou muito e a região inteira começou a parecer um cenário morto, esquisito, cinzento e triste de doer nos olhos. Aqueles que tinham propriedades, como aconteceu com Chico Nicácio, seu ex-patrão, começaram a vender tudo a preço de banana. Tudo penosamente construído ao longo de toda uma vida agora não valia quase nada. Ora, sem um pingo de chuva, sem água nos tanques e barragens, com a desesperança e o medo se alastrando, o que valeria aquele lugar?
Se quem era rico ou melhorado havia caído em dificuldades, em ter que vender o que tinha ou se acostumar a viver na precisão, imagine quem já não tinha nada ou quase nada? Pelos campos devastados, feios, magros, disformes, parecendo que os vapores do sol formavam fumaça, o que mais se via eram casebres abandonados, com as portas batendo, com gravetos onde havia uma moita esverdeada.
Resto de gado, num resto de pele e na ossatura de doer nos olhos, com aqueles olhos profundos e chorosos dos animais parecendo que gemiam em silêncio ou gritavam sem que ninguém pudesse ouvir, serviam como moeda de troca com um carregamento de água distante, uma fatia de jabá e meio saco de farinha.
Teve gente que trocou os três animais que tinha num saco de farinha e noutro de feijão velho e cheio de gorgulho. Mas fazer o que, se os meninos ainda não sabiam o que era a seca e todos os dias se danavam a chorar pedindo qualquer coisa pra colocar na boca e enganar o estômago?
Outro, desesperado porque não tinha nada para comercializar em troca de qualquer coisa, numa tarde olhou para sua filha mais velha de quinze anos, a mais bonita da região talvez, e o coração começou a lhe doer quando pensou na hipótese de levá-la à força para fazer vida no cabaré mais famoso da região, o de Madame Sofie, que ficava lá em Mormaço. Olhava a filha bonita e pensava seriamente em fazer isso, achando que mais tarde ela retornaria quase como uma virgem. E pensou em fazer logo no dia seguinte, mas antes disso se matou com um tiro de espingarda.
Num dia daqueles do mais puro desvanecimento e desesperança, enquanto tomavam uma cachacinha para matar a saudade de muita coisa boa, e uma saudade de ontem até, de quando tinham trabalho e a vida ali não estava naquela difícil situação, os dois amigos Timbé e Dandão chegaram a uma triste conclusão. Atinaram muito e remataram que ou sairiam o mais rapidamente dali ou teriam que ir dividir os espaços pelas portas também empobrecidas com outros mendigos.
Timbé viu Dandão baixar a cabeça e passar a mão pelos olhos molhados. Era difícil ver um amigo tão valente chorar, mas compreendia o tamanho daquele dor, pois ele também estava sentindo e há muito também chorando por dentro. Nesse mesmo dia resolveram vender a qualquer preço tudo que tinham, que nada mais era do que umas coisinhas minguadas e outro tanto de quase nada.
Mas o que doía mesmo de dilacerar coração, raiz, passado e presente, era terem de sair daquele berço tão familiar pra arriscar a sorte noutro lugar. Quando o cabra é novo, um dizia pro outro, é muito mais fácil começar a vida do nada, reconstruir as perdas e tentar sobreviver, mas quando já está naquela idade só mesmo o desespero para tomar tal decisão.
Não demorou mais que dois dias para arrumar comprador para o que tanto tinham lutado para construir. Mesmo com toda a região empobrecida de quase não restar um tostão no bolso de alguém, sempre existem aqueles que economizam o tempo todo para chegar diante do outro fragilizado e impor um preço que quiser. E assim foi feito. O que valeria um cesto foi vendido por uma cuia.
E a cuia já estava pela metade quando chegaram à nova e desconhecida cidade. Alugar barraco secou ainda mais a cuia. E antes que a cuia secasse de vez, totalmente desesperado, sem ter acostumado com nada, numa tristeza de corroer o corpo todo, Dandão sofreu um ataque do coração e morreu menos de um mês após a mudança, deixando viúva e a menina Manuela.
Por isso que a mulher que agora estava ali na sala, levada até lá nos braços de Teté e saindo daquela bebedeira toda, não era pessoa desconhecida. Pelo contrário, era quase da família, pois o velho Timbé a tinha sempre na conta de sua responsabilidade. Como homenagem ao velho amigo Dandão e sua esposa, ambos já falecidos, não poderia ser diferente. Eram ainda os resquícios do respeito ao ser humano trazidos daquele outro berço.

                                                    continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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