TEMPESTADE – 34
Rangel Alves da Costa*
Na cegueira que causa a paixão escondida e nos desatinos causados por essa mesma paixão, verdade é que o seminarista Tristão não deu ouvidos às falsas beatas forçosamente resguardadas na igreja, e saiu desembestado em direção à escolinha onde ardia em enfermidades sua amada professorinha.
O que se passa na cabeça de um jovem rapaz que se entrega à voracidade do vento e da tempestade em busca do amor ainda a ser completamente revelado? Um rasgo no peito que torna insuportável a existência; um corte profundo na alma cuja cura não vem com o silêncio nem com o grito, mas o soar bastante da palavra a ser dita ao outro; o sangue que jorra, a veia que explode, o coração que irrompe em ira, desespero e desesperança, querendo desfazer do erro a todo custo e no mesmo momento; a mente que voa e esvoaça, se espalha e esbagaça, se dimensiona e se diminui, se faz tudo e nada, num passo/compasso da indefinição, ainda que saiba muito bem o que queira fazer; a sede, a fome, a estranheza do corpo, o ser esquisito que não sabe o que quer e sabe que só quer o que não soube ter enquanto tinha chance de ter; a voz estranha, o grito alheio, o medo tão próximo, a ave-maria, o pai-nosso, a ladainha, o perdão, o arrependimento, e ainda o lamento de dor por não ter e somente as mil velas acesas podem apagar tanto sofrimento; tudo que vem junto num imenso espelho, mostrando, ferindo, cortando, dizendo da angústia, da dor, da solidão, do sofrimento, da lágrima, do choro incontido, do choro escondido, a vontade de desprender as asas bem na beira do precipício; a fuga para encontrar o amor que sumiu, e rápido, mais rápido, e mais ligeiro ainda, pois a fera vai saindo do labirinto com olhos vermelhos, olhos enormes, olhos faiscantes, boca de grilhões, dentes de tortura, bafo fétido e unhas famintas, pelo enojado, numa velocidade incontida, num pulo de morte, noutro salto pra vida; e as sombras, as sombras que já existiam, mas voltam ainda mais fantasmagóricas, mais escondidas, mais se revelando, mais amedrontando, mais assustando; ou será que é o medo de pular a poça, o poço, de saltar o buraco, de pisar na pedra, de confrontar o muro, de machucar o espinho, de seguir o caminho porque nele há uma fronteira e ninguém sabe nunca o que está no outro lado da margem que todo mundo enxerga adiante; mas ela, é ela ali, ou ali, ou acolá, deve ser ela que corre de um lado a outro, que acena, que chama, bate no coração, manda um beijo e diz que tanto ama; ou não será mais ela, e o que será então se já for outra, pois havia um encontro marcado, havia um destino a ser cumprido, havia nosso futuro e nossa esperança, e se não for ela o que será ou quem será, ou será outra coisa, outra pessoa, outra ideia, outra existência qualquer, talvez um absurdo, e se for a loucura, a doidice, a insanidade, o quarto gradeado que chama para findar os dias de solidão? Então qual resposta, se houver qualquer possibilidade de se resolver essa simples questão, de alguém que se entrega à sorte da escuridão por amor que somente agora se fez tão intenso e verdadeiro, tão real ao mundo e da forma mais dolorida ao coração: com a dor e na dor? Todas as respostas estavam nos devaneios, nos labirintos shakespearianos para o amor acometido de todas as dificuldades.
Se fosse castigo por ter o rapazinho sido prometido à vida sacerdotal, e ainda assim não tendo conseguido afastar totalmente do seu peito a imagem da bela mulher amada, a punição chegou bem antes do que qualquer um poderia imaginar.
Feito louco em meio à escuridão, sem enxergar um palmo à frente nem avistar onde iria colocar o próximo passo, com os olhos quase fechados diante da força da ventania e da água que caía em rajadas, qualquer ser humano - a não ser o maluquinho Teté, e pelos motivos que somente o mesmo sabe explicar -, se tornaria um refém da rudeza do tempo.
Ora, quanto mais o seminarista, o apaixonado e transtornado Tristão, se esforçava para seguir em frente mais era impedido pelo vento que batia no seu corpo e o fazia recuar. Ainda, assim, por mais esforço que fizesse, numa luta titânica para vencer a natureza em fúria, pouco progresso era conseguido. Uns passos mais apressados aqui, outros ali, mas sempre correndo o risco de não seguir adiante pelo que fosse encontrando pela frente. E foi exatamente isso que aconteceu.
Bem próximo ao local onde a professorinha havia caído quando saiu em busca de Tonico, o pé do rapaz tropeçou num tronco que se arrastava levado pela correnteza, alcançou um buraco e o grito se fez sem ninguém poder ouvir naquele instante. E o seminarista caiu como se tivesse sido jogado ao chão, de forma abrupta, dolorosamente esquisita.
E num breve instante que subitamente ficou inconsciente, sua mente se abriu para um mundo totalmente desconhecido: nuvens com mãos tocando sinos de uma agudeza estridente, para depois, um pouco mais ao alto, se abrir uma porta e dela se derramar um tapete em forma de manuscrito, em letras góticas imensas, onde claramente se lia “O Pecado Daqueles Que Traem o Chamado do Senhor Para Sua Missão Terrena”. De repente as letras sumiram e no seu lugar apareceu o rosto de Suniá, de olhos fechados, com uma lágrima descendo sobre a face. Estaria viva ou morta?
Contudo, a própria situação desesperadora cuidou de despertá-lo, trazê-lo de volta para outra realidade. Com uma das mãos agarrada ao tronco que o fez cair, puxava com força esse resto de árvore para salvar a própria vida. Situação mais que inusitada, mas o náufrago em plena noite da cidade se agarrava ao que existia ao redor para continuar sobrevivendo. E daí em diante somente os gritos e mais gritos, na esperança de ser ouvido.
Mas qual alma vivente poderia passar por ali senão o maluquinho Teté, correndo para cumprir uma missão mais que especial, que era salvar a vida professorinha, exatamente o amor da vida daquele que tanto precisava também de ajuda. E agora, o que fazer, prosseguir e deixar o coitado do seminarista naquela situação, ou primeiro ajudá-lo e depois seguir adiante com sua cura?
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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