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terça-feira, 28 de junho de 2011

OS MENINOS BRINCANDO (Crônica)

OS MENINOS BRINCANDO

                               Rangel Alves da Costa*


Na linha do tempo ainda era infância, mas na linha da vida era qualquer idade. Se a idade da infância é tempo de brincar, se divertir, ir aprendendo no lúdico os manejos da vida futura, então aqueles meninos se divertiam demais com o que faziam.
Mas parecia que os meninos brincavam com coisas diferentes, corriam por lugares diferentes, estudavam em escolas muito diferentes. Ninguém via uma bola pulando, uma pipa feliz, um cavalo de pau adoidado, um caderno, um lápis, uma borracha, um tênis, uma farda, um menino indo à escola e voltando. Ora, mas também e escola era outra...
As brincadeiras dos meninos eram outras, inusitadas, numa correria danada, numa pressa desenfreada, nos pés nus que viravam a esquina, no corpo que rolava morro abaixo. Pega, pega que eles vêm aí...
Zoinho soltava pipa para avisar aos marginais, traficantes e todos os envolvidos na bandidagem, que lá embaixo havia aparecido um carro da polícia e que já ia subindo o morro.
Meio-Quilo fazia verdadeiro atletismo, descendo ladeira escorregadia pra fazer a entrega de papelotes de drogas aos carros bacanas que estavam parados pelas esquinas. Feita a entrega, voltava na mesma corria para receber o seu prêmio: um cigarrinho pra acender e viciar.
Tição descia mais cedo, se largava pelo mundo feito qualquer criança, corria, zanzava, pedia, roubava, e quando não era pego pela polícia voltava correndo para entregar o ganho do dia na mão do dono do pedaço. Tinha o resto da tarde para se animar fumando maconha, usando crack, numa animação que ia até a boca da noite, quando se recolhia pra dormir em qualquer calçada, embaixo de papelões.
Zoiúdo se achava esperto demais, ficando ali mesmo, olhando e vigiando tudo, com menos de doze anos e já sedento e faminto pelas coisas que viciavam, que usava feito um doce ou sorvete, uma bala ou chocolate, até que começou a roubar gente da própria comunidade e foi deportado para outra comunidade, pra um cemitério embaixo do morro e nunca mais saiu de lá pra brincar de brincar.
Meleca crescia, mas nunca deixava de ser criança, nunca abrindo olho quando os outros mandavam, nunca fazendo no mesmo instante que os outros exigiam, se negando a trazer sua irmã do meio para a molecada se divertir. Um dia disse que ainda ia ser o dono dali e nunca mais ninguém ouviu ele dizer mais nada, pois foi jogado vivo e amarrado dentro de um saco costurado, bem na hora que um trem ia passando lá embaixo. Ninguém sabe se seguiu ou ficou pelos trilhos.
Exímio na brincadeira de bola de gude, sabendo como ninguém abrir buracos na terra para as bolas serem arremessadas, Taioba aprendeu depressa a abrir buracos maiores e mais fundos, nos escondidos do morro, nos fundos das casas, nos descampados. Cada buraco que abria cabia de três a quatro bolas de drogas prensadas e encobertas por plástico. Sabia certinho onde ficava cada buraco, pois sabia que se esquecesse algum iria pra dentro de um deles, com menos de sete palmos, cova rasa, sem nada por cima, sem cruz nem saudade.
Raposinha era nome de animal carnívoro, mas o menino sabia mesmo era cantar feito passarinho, imitar todos os pássaros e arremedar como ninguém sabiá e rouxinol. Todas as vezes que o pássaro cantava em cima da laje era porque tinha usuário de droga esperando na subida do morro. Um dia esqueceu de avisar a chegada de bom comprador e acertaram ele com baleadeira, bem no lugar do bico, espalhando a penugem nova pelo ar. Despencou de lá feito rolinha que cai morta do pé de pau.
Buiú aprendeu muito cedo a escrever. Ler não sabia não, mas escrevia certinho quantos quilos de maconha haviam chegado, quantas pedras de crack havia no estoque, quantas tinham sido vendidas, os fiados, os lucros, o deve e o haver. Mas também quem já havia passado tempo de pagar e ainda não tinha comparecido. Anotava o endereço do cabra e entregava ao dono da boca, seu parente, talvez seu pai. Era um bilhetinho selando a morte, partindo das mãos do menino que já era praticamente doutor no que fazia.
E a pipa subia no céu azul, fogos cortavam a noite, o cavalo de pau sobre o morro apressado, a bola de gude acertava o buraco, o caderno era todo rabiscado, o grito, o espanto, tudo tomava conta do ar. É a vida era festa, pois era a vida que se tinha. Se desse para viver e brincar na dor um pouco mais.
E assim os meninos brincavam; os meninos viviam; os meninos morriam...



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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