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sexta-feira, 3 de junho de 2011

COMO NASCE E GRITA O GRITO (Crônica)

COMO NASCE E GRITA O GRITO

                            Rangel Alves da Costa*


O grito é preexistente a tudo. Quando Deus disse: "Faça-se a luz!" E a luz foi feita, o fez através de um grito. Antes mesmo disso, quando a terra ainda estava informe e vazia; as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas, a presença divina era um verdadeiro grito querendo soar bem alto e dizer “Faça-se tudo, enfim!”.
E depois, num tempo muito posterior, um descendente de Adão e Eva abriu a janela do quarto ao amanhecer e se deparou com a grandeza da criação divina, exposta em tudo ao redor, e seus olhos gritaram de alegria e encantamento.
Mas ao retornar ao centro do quarto e procurar o velho e amigo espelho, silenciosamente se olhou e deu um grito mudo de espanto, de sobressalto ao perceber que aquele que ainda era ele já era outro, nas tantas marcas na face que nem imaginava existentes.
Mas guardou esse espanto como lição. Da próxima vez não iria gritar tanto assim, pois depois de tanto tempo é que estava se conhecendo melhor. Tentou colocar no semblante um sorriso, prometeu que aquele seria um dia de plena felicidade e foi se arrumar para verdadeiramente começar o seu dia.
Gostava de morder uma fruta ou outra pela manhã, saborear um pedaço de melancia geladinha, beliscar um cacho de uvas. Mas naquela manhã sentiu uma vontade danada de tomar um café completo com pão, leite e ovos. Já fazia tempo que não comia nada disso e muito menos havia comprado.
Seguiu até a padaria da esquina e ficou abismado com o preço do pãozinho, dos ovos, do litro de leite. A manteiga estava com um custo que era um horror, um copinho de coalhada num valor absurdo. Comprou porque estava com vontade, teve vontade de reclamar, mas ficou quieto, apenas o seu bolso deu um grito horrendo.
Sentado à mesa, passando os olhos nos jornais como sempre fazia, percebeu que não havia uma notícia sequer agradável, alegre, boa de se ler, alguma coisa que trouxesse esperança na vida já tão difícil. E quanto mais lia mais sentia algo como sangue escorrendo do jornal sobre a mesa, uma podridão horrível, fotografias de absurdos caindo bem ao lado do prato. Os olhos gritavam, o estômago também, e acabou explodindo num vômito só no banheiro. E que grito de dor mais terrível!
Mas havia prometido a si mesmo um dia maravilhoso, então não eram jornais nem suas notícias aberrantes que iriam impedir de ser feliz. Contudo, ao abrir a porta viu que o jardim estava feio, abandonado demais, com o mato crescendo e tomando conta de tudo. Procurou uma planta especial que havia plantado em homenagem a alguém e não encontrou. Mas que tristeza no coração, que grito medonho esse de não encontrar a flor com jeito e perfume da outra flor.
O carro quase não dá partida, e por isso logo sentiu que teria de colocar a mão no bolso para fazer o conserto; quis completar o tanque de gasolina, mas diante do preço teve que se contentar com cinco litros; um motoqueiro desastrado, até parece que propositalmente, jogou seu retrovisor no asfalto; ficou dez minutos próximo à linha do trem esperando que todos os vagões passassem apitando, gritando vagarosamente. Ainda não era nem oito da manhã e já tinha vontade de descer do carro e gritar desesperadamente pra todo mundo ouvir.
De repente, o que parecia ser um dia ensolarado foi totalmente tomado por nuvens pesadas e negras e logo uma violenta tempestade começou a cair. Já morrendo de raiva, vendo que a manhã já estava completamente perdida, gritava de ódio por dentro. Quando o sol voltou a brilhar, já perto do meio-dia, andava pela rua silenciosamente gritando feito um desesperado.
Os olhos pareciam querer subir na mais alta montanha e gritar que não podiam acreditar no que viam: pessoas que se agrediam apenas com o olhar, crianças se drogando ao ar livre, mãos e mãos estendidas por uma moeda, qualquer coisa. E mais adiante o rangido brusco de um carro e um corpo que era atirado longe. O corre-corre de pessoas, um barulho infernal, uma situação insuportável de se viver.
E de repente todos olharam em sua direção, assustados, pensando estar na presença de um doido: O grito, da boca o grito; o grito, mais alto e mais forte que já foi gritado e ouvido, o grito. O grito desesperado, aflito e angustiado, o grito...



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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