TEMPESTADE – 52
Rangel Alves da Costa*
Quanta tristeza cercava o menino Tiquinho sem que ele soubesse da verdadeira dimensão da dor. Já estava sofrendo demais com a misteriosa doença da professorinha, de vez em quando se lembrava do difícil estado de saúde da mãe, porém ia levando tudo como podia. Mas se o pior realmente acontecesse à sua querida mãe, naqueles momentos, naqueles instantes, e sem que o mesmo pudesse estar por perto?
Após a tormentosa visão no meio da tempestade, com a certeza de que aquela aparição era mesmo de sua esposa e que não restava mais dúvidas de que ela não havia suportado tanto sofrimento e se despedido dessa vida, o pai de Tiquinho levantou do chão empoçado. Ali havia estado se martirizando e inconscientemente maldizendo a sorte e a divindade, esconjurando a fé e se sentindo descrente de tudo no mesmo instante.
Levantou cambaleante e se sentiu completamente perdido, sem saber se seguia adiante, pra qualquer lugar em busca do filho, ou se voltava para confirmar o que não tinha mais dúvidas. Como não estava longe de casa, não durou muito e conseguiu abrir a porta e entrar.
Lá dentro escuridão e silêncio, uma paz amedrontadora que fazia o reinado de fantasmas e visagens. A vela havia apagado, o candeeiro também, tudo tão negro e tão triste. Silêncio mais doloroso, nenhum barulho vindo do quarto, nenhum arfar, nenhum murmúrio de arquejamento. Era sinal de sono profundo ou morte rasa, visível, escancarada, feia, feia demais na feição de quem se ama. Era amor matuto, simples, sem agarramento nem confissões silenciosas, mas um amor grande demais e profundamente verdadeiro.
Mesmo em meio ao negrume, sabia onde encontrar o candeeiro, pois ele estava em cima de uma cristaleira sem porta de vidro, ali na sala, pertinho do quarto. Riscou um palito na caixa de fósforo que estava ao lado e depois reacendeu o pavio, iluminando ao redor, com luz suficiente para se locomover para onde quisesse. Mas o olhar só mirou a porta do quarto, a porta que levaria ao encontro de Mazé deitada na cama, ali estendida para...
Para a morte. Caminhou lentamente com o candeeiro na mão e foi sentar na beirada da cama, calmamente, para não fazer barulho e acordar se ela estivesse dormindo. Levou a luz mais próxima da face da esposa e apenas confirmou o que já sabia. A face amarelada, esbranquiçada, cinza, sem cor, com a cor da morte, ali pintada pelo pincel mais doloroso de toda a existência, o pincel que traceja de morte uma vida.
Levou a mão ao rosto desfalecido, fechou-lhe os olhos, percorreu carinhosamente os cabelos escorridos, seguiu até a face e acariciou cuidadosamente, como se estivesse querendo saber de qual fruta seria a maciez daquela pele. Era o namorado enamorado, ao lado da tão amada mulher, querendo mais uma vez dizer o quanto amava, o quanto era bom viver ao seu lado, quanto era valioso ser seu esposo.
Estava normal, muito normal, apenas um homem apaixonado pela mulher amada, ali deitada, talvez somente dormindo. Ora, Deus, ainda não havia absorvido aquela realidade, ainda não estava consciente da morte da esposa, ainda era apenas um homem apaixonado ao lado de sua mulher, e tanto era assim que se aproximou um pouco mais e levou os lábios diante dos lábios dela e beijou-os, numa doçura de encantar. E então o mundo caiu, diante da frieza correspondida, dos lábios mortos, enrijecidos, frios, do nada encontrado em troca.
Levantou numa rapidez tresloucada, furioso, agitado, nervoso, jogou violentamente o candeeiro contra a parede e gritou, num brado de animal ferido de morte, gritou incontidamente em plenos pulmões. E talvez, mesmo inconscientemente, tenha bradado como no Evangelho de Mateus 27: "Eli, Eli, lama, sabactani", "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?", “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”.
E talvez ainda tenha falado bem alto, num verdadeiro rugido em cima da montanha da desesperança pela perda da esposa amada, o Salmo 21:
“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes? E permaneceis longe de minhas súplicas e de meus gemidos?
Meu Deus, clamo de dia e não me respondeis; imploro de noite e não me atendeis.
Entretanto, vós habitais em vosso santuário, vós que sois a glória de Israel.
Nossos pais puseram sua confiança em vós, esperaram em vós e os livrastes.
A vós clamaram e foram salvos; confiaram em vós e não foram confundidos.
Eu, porém, sou um verme, não sou homem, o opróbrio de todos e a abjeção da plebe.
Todos os que me vêem zombam de mim; dizem, meneando a cabeça:
Esperou no Senhor, pois que ele o livre, que o salve, se o ama.
Sim, fostes vós que me tirastes das entranhas de minha mãe e, seguro, me fizestes repousar em seu seio.
Eu vos fui entregue desde o meu nascer, desde o ventre de minha mãe vós sois o meu Deus.
Não fiqueis longe de mim, pois estou atribulado; vinde para perto de mim, porque não há quem me ajude.
Cercam-me touros numerosos, rodeiam-me touros de Basã;
contra mim eles abrem suas faces, como o leão que ruge e arrebata.
Derramo-me como água, todos os meus ossos se desconjuntam; meu coração tornou-se como cera, e derrete-se nas minhas entranhas.
Minha garganta está seca qual barro cozido, pega-se no paladar a minha língua: vós me reduzistes ao pó da morte.
Sim, rodeia-me uma malta de cães, cerca-me um bando de malfeitores. Traspassaram minhas mãos e meus pés:
poderia contar todos os meus ossos. Eles me olham e me observam com alegria,
repartem entre si as minhas vestes, e lançam sorte sobre a minha túnica.
Porém, vós, Senhor, não vos afasteis de mim; ó meu auxílio, bem depressa me ajudai.
Livrai da espada a minha alma, e das garras dos cães a minha vida.
Salvai-me a mim, mísero, das faces do leão e dos chifres dos búfalos.
Então, anunciarei vosso nome a meus irmãos, e vos louvarei no meio da assembleia.
Vós que temeis o Senhor, louvai-o; vós todos, descendentes de Jacó, aclamai-o; temei-o, todos vós, estirpe de Israel,
porque ele não rejeitou nem desprezou a miséria do infeliz, nem dele desviou a sua face, mas o ouviu, quando lhe suplicava.
De vós procede o meu louvor na grande assembléia, cumprirei meus votos na presença dos que vos temem.
Os pobres comerão e serão saciados; louvarão o Senhor aqueles que o procuram: Vivam para sempre os nossos corações.
Hão de se lembrar do Senhor e a ele se converter todos os povos da terra; e diante dele se prostrarão todas as famílias das nações,
porque a realeza pertence ao Senhor, e ele impera sobre as nações.
Todos os que dormem no seio da terra o adorarão; diante dele se prostrarão os que retornam ao pó.
Para ele viverá a minha alma, há de servi-lo minha descendência. Ela falará do Senhor às gerações futuras e proclamará sua justiça ao povo que vai nascer: Eis o que fez o Senhor”.
E mais tarde, na mais completa escuridão, depois de ter chorado, gritado, bradado, gemido, se jogou na cama e ali adormeceu ao lado da esposa morta, com o braço estendido sobre ela, com a face tocando o rosto amado.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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